“Para moldar o futuro precisamos, antes, (re)sensibilizar as pessoas”
Pesquisadora e comunicadora, Lua Couto fala sobre a importância de tocar e afetar as pessoas para a Regeneração, e de que forma desenvolve esse trabalho nas corporações
“Para moldar o futuro precisamos, antes, (re)sensibilizar as pessoas”
BuscarPesquisadora e comunicadora, Lua Couto fala sobre a importância de tocar e afetar as pessoas para a Regeneração, e de que forma desenvolve esse trabalho nas corporações
7 de junho de 2022 - 9h00
Por Carol Scorce
Foi no trabalho de campo com uma mineradora que a publicitária Lua Couto deu o primeiro ponto de virada em sua trajetória profissional. “Essas empresas destroem o solo, as comunidades, a vida daqueles trabalhadores”, conta. Lua viu condensada na atuação das mineradoras o que ela chama de sistema degenerativo. Hoje, ela integra uma rede de ideias e pessoas chamada Futuros Possíveis, que tem falado, de diversas formas e em diferentes lugares, sobre como uma nova forma de habitar este planeta (agora) pode mudar – ou moldar – o futuro. Essa forma é a Regeneração.
A comunicadora explica que seu trabalho, e também a sua singularidade, dentro da Regeneração é a de ser a porta de entrada, ou “falar com a coragem, com o coração” de modo a afetar as pessoas. “É necessário sentir a dor do mundo ao mesmo tempo que eu penso sobre esse mundo para que, então, se possa agir criticamente para transformação sistêmica”, explica.
Confira a entrevista na íntegra:
Existem diversas lideranças falando sobre a importância de uma visão de mundo que integre melhor a nossa forma de habitar o planeta com a natureza. A Regeneração é um conceito que abarca todas essas visões?
Existem muitas pessoas falando sobre regeneração por múltiplas perspectivas. Não existe um consenso acadêmico sobre o tema no Brasil. Tem gente dando nomes diferentes para o que eu chamo de Regeneração, e isso é positivo. A minha visão de Regeneração é a de transformação sistêmica. Não dá para mudar o mundo sem eu me mudar. Não dá para mudar a saúde sem mexer na economia. Não dá para mudar a saúde ecológica sem mudar a saúde humana.
No trato com as corporações, você diz que o seu trabalho é a porta de entrada para oferecer o tema e despertar o interesse. Como as organizações, que muitas vezes promovem práticas que vão na contramão da Regeneração, recebem essa temática?
Antes da pandemia de Covid-19, falar desse tema parecia uma grande utopia. Depois, as marcas começaram a me procurar para entender o que é Regeneração e como a gente poderia, num pós-crise, ter uma visão de mundo mais ecológica da vida, dos negócios, das relações. Falar disso dentro das corporações é algo antagônico. No fundo, a Regeneração é anticapitalista porque ela faz a gente entender que não é possível com o atual modelo econômico habitar esse mundo de maneira saudável. Eu não levo esse conteúdo para as organizações, mas para as pessoas que estão dentro das organizações. O trabalho que faço é o de sensibilização, que é a porta de entrada. A minha aula é baseada no tripé sentir, pensar e agir. É necessário sentir a dor do mundo ao mesmo tempo que eu penso sobre esse mundo para que, então, se possa agir criticamente para transformação sistêmica.
As populações estão atravessando muitas crises, como a fome e recursos naturais que já começam a faltar, como por exemplo a água. Mesmo assim, mudar hábitos destrutivos, ou degenerativos, é bastante difícil. Qual a diferença entre ter consciência e estar sensível às causas?
A gente é viciado em consumo, em soluções de curto prazo, e isso já está corporificado. Não vai ser só saber que o que você está vestindo foi produzido com trabalho análogo à escravidão em alguma parte do mundo que vai fazer alguém deixar de comprar tal roupa. Dados e fatos não são suficientes para o tamanho da mudança que a gente precisa para criar outros futuros. Não vai ser só com a lógica e com a razão que a gente vai fazer essa transformação.
Que tipo de abordagem você dá para tornar esse tema mais concreto na vida das pessoas e com isso conseguir tocá-las efetivamente?
Quando eu falo de narrativas regenerativas, estou falando dessas histórias de mundo que são dissonantes com o capitalismo, com a exploração das pessoas. Faço, então, um convite para essas outras visões de mundo. A gente tem os povos que o Ailton Krenak diz que são “os povos que ficaram agarrados às bordas do planeta”. Eles são os indígenas, os quilombolas, os beiradeiros, os que a gente lá na minha região (Belém/PA) chamamos de ribeirinhos. Em geral, no Brasil, são essas pessoas que vivem à margem, que se relacionam com a natureza de uma maneira saudável e que, portanto, vão trazer essas cosmovisões ancestrais. Além dessas, têm também as cosmovisões de resistência, que estão combatendo ou fazendo contenção de violência do que esse mundo está produzindo hoje, a partir de grupos organizados. A gente vai ter formas de, por exemplo, produzir alimentos e que suas práticas de produção estão em equilíbrio com a natureza, como a agroecologia, a agrofloresta e a bioconstrução.
Que tipo de reflexão você propõe para os grupos onde atua nesse processo de (re)sensibilização?
Existem três perguntas que são essenciais: Quem eu sou? De onde vim? Para onde eu quero ir? Essas perguntas, que sempre guiaram a humanidade, vão nos ajudar a melhorar as relações no mundo. Eu sou afroindígena? Eu sou branca? Eu vivo num país onde milhares de pessoas estão vivendo em situação de vulnerabilidade alimentar? Quem são os meus ancestrais? Talvez eles não sejam o que a modernidade me conta e essa busca por ancestralidade me ajuda a começar a entender as minhas dores. Nós somos um pedacinho da história. Eu estou passando a história de mãos em mãos para as futuras gerações.Quando entendemos esse fio condutor da história, a partir dessa ideia ancestral de tempo, paramos de agir pensando só no “eu quero viver”, individualmente, imaginando que, com sorte, vamos viver cem anos.
E como as pessoas recebem o tema? Você sente que ele consegue afetar a subjetividade de cada um?
Cada grupo social vai fazer esse processo de cura a partir da sua própria lógica. Pessoas brancas sentem muita culpa e muito medo. Esse é o primeiro sentimento. Durante a aula, a gente acolhe esse sentimento e levo duas perspectivas para elas. Uma é a de que a culpa leva à paralisia. A culpa não nos ajuda a resolver nada. Responsabilidade nos leva a ação. Depois, falo sobre a culpa e a paralisia terem a ver com uma autoindulgência branca. Como se as pessoas fossem frágeis. Não somos frágeis. É necessária uma aceitação de que temos responsabilidade pelo estado de coisa. Somos agentes e vítimas. Lidar com isso é muito importante. Já as pessoas pretas sentem, no geral, raiva, porque são elas que sofreram todo tipo exploração para que as pessoas brancas tenham privilégios. A questão é que as pessoas pretas já estão muito mais conectadas com o que eu chamo de princípios da regeneração. É própria da lógica da cultura afro-brasileira a ideia de aquilombamento, que é uma ideia de coletividade. As pessoas da periferia, por questões de sobrevivência, não perderam sua conexão das coisas que vão além da individualidade, do eu e da família. Famílias brancas em melhores condições sociais muitas vezes mal sabem quem são seus vizinhos.
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