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O que esperar das “pays” e do novo sistema de pagamentos mobile


26 de julho de 2018 - 15h17

Aplicativo do WeChat pode ser usado para pagar a passagem no metrô de Shenzhen, na China (Crédito: reprodução)

Se você nasceu entre os anos 1980 e 1990, você já viveu disputas tecnológicas o suficiente para reconhecer uma quando a vê. VHS contra betamax, blue-ray versus HDVD, plasma e LCD, Blackberry contra smartphone… A sociedade nunca viu tanta competitividade em inovação como nos últimos 40 anos. Enquanto Apple Pay e Samsung Pay chegam ao Brasil, seria sensato imaginar que essa é mais uma dessas disputas, mas por incrível que pareça, precisamos olhar para o outro lado do mundo para perceber contra quem as “pays” de fato estão lutando.

Quando falamos de pagamentos, é importante termos noção do ambiente no qual estamos inseridos. O Brasil (assim como os EUA, de onde as “pays” vêm) é altamente centralizado ao redor dos bancos, bandeiras e credenciadoras no que diz respeito a dinheiro. Nossas operações no dia a dia são realizadas com cartões bandeirados emitidos por bancos, em maquininhas de no máximo 5 credenciadoras diferentes e 100% das contas são pagas em uma agência bancária ou representante bancário como as lotéricas.

Apple Pay, Samsung Pay e semelhantes oferecem camadas adicionais de segurança com a substancial melhora da experiência do usuário. Através da autenticação por biometria dos celulares ou pela tecnologia de reconhecimento facial, as wallets substituem a necessidade de imputação de senha e eliminam o risco de fraude. Embora de fato sejam novidades bem-vindas, as “pays” são inovações de continuidade, refinando um processo já bem consolidado ao redor dos bancos e bandeiras. Formas alternativas de autenticação de usuários são patrocinadas pela Visa e Mastercard há pelo menos três anos, enquanto bancos brasileiros já utilizam há cinco a biometria como substituição às senhas em seus terminais.

Os outros mercados de pagamento ocidentais não diferem muito do padrão brasileiro ou americano. Mais ou menos burocráticos, todos nós estamos agregados ao triângulo bandeira-banco-credenciadora. Do outro lado do mundo, porém, as inovações em pagamentos são realmente disruptivas, quebrando esse triângulo em duas ou até três frentes. Quando comparadas às alternativas Indianas ou Chinesas, as “pays” estão do mesmo lado, e não competindo entre si.

Pagamentos mobile são soberanos na China. Praticamente a metade de todo o dinheiro movimentado pelo consumo de bens e serviços chineses atualmente passa por dois apps: Alipay e WeChatPay. Um bilhão de pessoas já pagam todas as suas contas em um dos apps que não necessitam de um banco, cartão ou credenciadora. Todos esses consumidores recebem seus salários e imediatamente transferem os valores para as carteiras do maior e-commerce do mundo (Alibaba) ou do maior app de mensagens do mundo (WeChat). De lá, consomem em lojas através de QRcodes, pagam serviços através de transferências diretas entre carteiras e consomem no e-commerce com as wallets.

Na Índia, embora o salto do dinheiro em espécie para os pagamentos mobile não tenha sido tão imediato, o Whatsapp pilota sua modalidade de pagamentos diretos entre bancos. O maior app de comunicação da Índia, com 200 milhões de usuários, está integrado à rede de pagamentos interbancários UPI, permitindo que todos os seus usuários transfiram fundos instantaneamente entre contas e paguem por serviços e produtos on-line com a mesma facilidade dos chineses. As bandeiras e as credenciadoras nesse modelo são deixadas de lado, mas os bancos continuam importantes como certificadores e operadores das transações.

As “pays” chegaram primeiro e contam com o patrocínio dos tradicionais líderes do sistema, mas a dependência de aparelhos muito caros para o consumidor médio brasileiro inviabiliza sua adoção em grande escala. Enquanto biometria e reconhecimento facial forem funcionalidades exclusivas de smartphones que custam de duas à quatro vezes o valor do salário mínimo, as pessoas continuarão optando pelos seus cartões e boletos.

Entretanto, existem movimentos muito mais substanciais do Banco Central em direção à adoção de um modelo entre o indiano e o chinês. A recém-empoderada CIP funciona de forma muito semelhante a UPI indiana, concentrando todos os pagamentos em seu sistema, independentemente de onde se originaram. Diversas empresas do ramo de tecnologia, até então afastadas do mundo da liquidação financeira, hoje estão em integração com a CIP e esperam competir de igual para igual, aos olhos do consumidor, com as credenciadoras tradicionais.

Em outra iniciativa semelhante, o BC criou no início desse ano o Grupo de Trabalho de Pagamentos Instantâneos (GT-PI), cujo objetivo é garantir a transferência eletrônica de fundos em tempo real, 365 dias no ano, 24 horas por dia. Enquanto a expectativa é que os primeiros viabilizadores desse novo arranjo de pagamento sejam os próprios bancos, o sistema em discussão é muito semelhante ao chinês, e não seria insensato esperar que carteiras digitais menores venham a aderir ao sistema e viabilizem pagamentos e transferências P2P sem as restrições impostas pela regulamentação vigente.

Embora Apple Pay e Samsung Pay cheguem ao Brasil fazendo barulho, com suas propagandas na TV aberta em horário nobre e com a corrida dos grandes varejistas para disponibilizarem o meio de pagamento o quanto antes, apostaria minhas fichas na longevidade de um modelo de consumo direto banco a banco, semelhante ao utilizado na Índia. Os bancos no mundo inteiro têm muito medo do que Alipay e WeChatPay podem tirar de fatia de mercado e a melhor forma de se proteger é fazer concessões. Não acredito que o nosso “WhatsappPay” já exista e ainda espero o surgimento de um player forte no meio de pagamentos diretos, mas os esforços do BC e a conivência dos maiores bancos nacionais deixam claro que esse seria o modelo mais confortável para o sistema inovar sem perder o status quo.

 

*Crédito da imagem no topo: pixelfit/iStock

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