O círculo vicioso da mídia hipócrita
Ou o meio é poderoso, ou aceita a mediocridade de uma relação que levará todos ao desaparecimento
Um meio de comunicação existe para informar algo a um grupo de pessoas. Até a virada do século, se tratava de uma operação cara, normalmente utilizando papel impresso (jornais e revistas) ou sofisticados meios eletrônicos (TV e rádio). O alto custo, as complicadas operações, as dificuldades de mercado e as limitações regulamentares impediam que um cidadão comum se transformasse em um veículo de comunicação.
Até que surgiram as plataformas digitais. E o mundo mudou.
Hoje alguém decide no café da manhã lançar uma operação de mídia – seja um canal no YouTube, um site, um podcast ou algo em redes sociais – e antes do almoço já está operando. Se o conteúdo chamar a atenção e os algoritmos das redes ajudarem, até a hora do jantar já terá alguns milhares de seguidores e ao dormir os primeiros reais cairão na conta.
Se por um lado ficou fácil abrir uma operação que amplifica ideias, por outro isso se transformou numa tremenda ameaça. Qualquer um diz o que quiser, o impropério repercute e em pouco tempo uma mentira está espalhada pelos quatro cantos do mundo – como se fosse verdade. E como o autor se esconde atrás de um apelido, ou apaga a bobagem depois que a mentira se disseminou, fica tudo por isso mesmo.
Um jornal precisa ter um responsável civil, uma pessoa que responde perante a justiça por qualquer deslize de suas páginas. Uma operação via Internet é livre e irresponsável. Ninguém responde por ela. Não existe legislação para impedir que mentirosos usem redes sociais para ganhar eleições, ou pelo menos para punir quem espalha absurdos garantindo ser verdade. Sem regulamentar, a Internet será, cada vez mais, território de irresponsáveis e aproveitadores da burrice alheia.
Mas por que é tão difícil criar regras?
Tudo começa – e termina – no círculo vicioso da mídia hipócrita. Os mesmos que gritam pelo fim da adultização e exploração de crianças impedem que se aprove regras. Basta seguir o caminho do dinheiro.
- As big techs (principalmente Google, Meta e Amazon) faturam nada menos que 78% do dinheiro investido em mídias digitais (balanço de 2024 nos Estados Unidos). E aumentando. Ou seja, para elas o que vale é ter gente clicando em qualquer coisa. Quanto mais cliques, melhor;
- Os pequenos veículos (como aquele que nasce no café da manhã) apelam para qualquer coisa, desde que gere cliques. Dizem as pesquisas que quanto pior for a “notícia” e quanto maior a “denúncia”, maior o engajamento – leia-se cliques. E não importa se for verdade. Aliás, a mentira bem contada para uma bolha gera muito maior engajamento que a verdade. Então um pedaço daquele dinheiro administrado pelas big techs (programática) cai na conta dessa pseudo-mídia;
- Os grandes e renomados veículos de comunicação aceitam a falta de regras para faturar alguma coisa. Topam entregar inventário de suas posições digitais em troca de algum valor (em geral, bem baixo). Sabem que um cliente paga 10% do valor de um anúncio de venda direta, quando chega por programática. E fingem que não entendem como esse mesmo cliente está nos seus banners. Hipócritas, não reclamam – com medo de perder essa miséria;
- Os anunciantes querem vender mais e gastar menos. Se um anúncio via Google é mais barato e funciona, é lá que se faz o investimento. Mesmo que a mídia que faz circular o anúncio é propagadora de mentiras e defende valores politicamente incorretos. O que vale é ganhar dinheiro;
- Os políticos querem reeleição. E usam a estratégia da disseminação da mentira, para chegar aos ouvidos de seus eleitores como se verdade fosse. Aceitam dinheiro de lobby de big techs para retardar votações, boicotar regulamentações. E nada acontece. Se pelo menos a ética fosse respeitada, metade não conseguiria um novo mandato;
- Os moralistas apelam para o discurso da “liberdade de expressão” e dos direitos democráticos. Tremenda balela. É exatamente ao contrário. Sem controle, sem regras, o que não existe é a liberdade de expressão. Fala mais quem grita mais alto e repete bobagens milhares de vezes. E quem tem dinheiro para comprar favores e posições nos algoritmos;
- A audiência se acostumou a acreditar no título sem checar a fonte. Foi um trabalho longo e bem-feito por quem incentivou o crescimento digital (sim, as mesmas big techs). Hoje, os algoritmos constroem a nova verdade e poucos cidadãos dão valor a quem dissemina aquele conteúdo – o mínimo para saber se é confiável ou não. Ao topar tudo (e redistribuir em suas redes) a audiência acaba por colaborar para a desinformação coletiva. Pior, na ilusão do “tudo grátis” fornece dados preciosos para que as big techs sigam aumentando o butim;
- E a inteligência artificial recebe inputs de todas as fontes. Quando se dá conta que tal conteúdo é repetido inúmeras vezes por muitas e muitas fontes, entende tratar-se de uma verdade. Mesmo sendo uma mentira. Aí a referência passa a ser a informação incorreta.
Nessa tempestade perfeita, quem ousa se manifestar de modo contrário ao círculo leva pedradas. Ou o meio é poderoso, tem apoio da audiência e banca o conflito, tipo The New York Times, ou aceita a mediocridade dessa relação que levará todos ao desaparecimento. Basta esperar.
Está difícil ser otimista em meio a esse tsunami sem um final conhecido.