O vírus do otimismo

Buscar
Publicidade

Opinião

O vírus do otimismo

Muito raramente, o mundo se vê diante de uma grande crise que, se bem aproveitada, é capaz de mudar para melhor a trajetória da humanidade


31 de março de 2020 - 11h16

(Crédito: Grivina/ iStock)

Não foram poucas as vezes em que me declarei — aqui mesmo, neste Coffee Break — como um incorrigível otimista. E não seria agora, nem mesmo diante da onda de pessimismo apocalíptico que parece ter tomado conta do mundo, que eu mudaria de lado. Como meu irmão Léo Caetano vive dizendo, ser pessimista dá muito trabalho, uma vez que é um “full time job”. Já o otimista só sofre na hora da tragédia, se ela um dia chegar, sendo que minha experiência mostra que 99% das tragédias imaginadas por nossas cabecinhas fantasiosas jamais se concretizam. Pensem no seguinte: com a explosão do coronavírus, os pessimistas já se consideram mortos desde meados de março, enquanto nós, otimistas, só ficaremos preocupados de verdade quando um médico vestido de preto, com óculos, cartola, bengala e máscara de corvo bater em nossas portas. Brincadeiras à parte, é óbvio que ser otimista não é o mesmo que ser irresponsável. Escrevo este texto trancadinho em minha casa, em Windermere, Flórida, mesmo sabendo que a cidade foi uma das menos atingidas pelo contágio da Covid-19, até aqui. Temos que ser responsáveis, seguir as orientações das autoridades e, caso as autoridades sejam completamente imbecis, situação infelizmente recorrente nos últimos tempos, usar nosso discernimento para proteger as pessoas ao nosso redor. No entanto, uma vez tomados os devidos cuidados, que possamos voltar a sonhar e a combater o desespero com a razão e novas ideias. E é sobre novas ideias que eu quero falar hoje.

Muito raramente — uma vez por geração, talvez —, o mundo se vê diante de uma grande crise que, se bem proveitada, é capaz de mudar para melhor a trajetória da humanidade. Como otimista, creio que estamos diante de uma dessas oportunidades. As razões são muitas e eu gostaria de compartilhá-las com os que me leem aqui. A primeira e mais óbvia é perceber que, ao contrário de outras crises graves que chegaram durante guerras ou foram causadas justamente por elas, a crise atual aparece em um período de razoável equilíbrio geopolítico no mundo. Não atravessamos um mar de rosas nas relações internacionais, mas, se compararmos com o cenário da gripe espanhola, por exemplo, que surgiu em meio à Primeira Guerra Mundial, perceberemos o quanto somos afortunados.

Algumas coisas que já vinham sendo observadas como tendências irreversíveis, agora serão definitivamente aceleradas, tornando-se parte não apenas da vida de pessoas e empresas mais avançadinhas ou chegadas a um experimento bacana, mas de quase todas as pessoas. A mais evidente de todas essas frentes de evolução é a das relações de trabalho. A crise atual vai fazer pelo home office o que a primeira explosão da internet, no final dos anos 1990, fez pelo fim do terno e gravata e pelos ambientes hierarquizados e compartilhados das empresas. Gente que jamais sonhou em trabalhar remotamente, que se apegava à tradição por pura inércia, foi obrigada a aprender a fazer conferências de vídeo e áudio, a usar o Slack, a compartilhar arquivos pelo Google e assim por diante. Uma vez que todos estão conectados, porém distantes, a geografia perde relevância em detrimento do conhecimento. Quem sabe mais passa a valer mais do que quem está à mão. O bom chefe não é mais o que fica em cima ou faz tudo junto, mas o que é capaz de inspirar e de estimular a capacidade empreendedora das equipes. Países que já começavam a avaliar a ideia da semana de quatro dias úteis podem acelerar seus planos. A quantidade de ferramentas para trabalho online e para suporte dos que trabalham de casa vão explodir em quantidade e qualidade. Um admirável mundo novo do trabalho está apenas começando.

Outras discussões, ainda mais relevantes do que a das relações de trabalho, também ganharão novo fôlego. A questão da mudança climática, sobre a qual muitos governantes adoram fazer troça, não poderá mais ser negligenciada. O mesmo vale para o debate sobre concentração urbana, ciência versus fanatismo religioso e o egoísmo das elites. Tudo será resolvido? Claro que não, ao menos no curto prazo, mas estamos mais próximos da solução agora do que estávamos em fevereiro. Apenas para dar um exemplo prático, o tema da saúde pública universal nos Estados Unidos, que sempre foi um dos maiores tabus do ambiente político, é agora apontado pela maioria do eleitorado como a mais relevante de todas as questões da eleição presidencial de novembro. Mesmo entre os eleitores do partido Republicano, a política de saúde já figura entre as preocupações mais relevantes. Não por acaso, Trump deixou de repetir um de seus motes favoritos: a extinção do Obamacare.

Estamos testemunhando a reação em cadeia da sociedade organizada diante de uma das maiores crises globais que já vivemos, possivelmente, a maior de nossa geração. Ou alguém duvida que finalmente vai aparecer dinheiro — e muito — para o desenvolvimento de uma vacina eficaz contra a gripe e outras enfermidades capazes de se transformarem em epidemias de alcance global? Quem viu o ótimo documentário Pandemia, da Netflix, sabe do que estou falando. Fora alguns abnegados — médicos que lutam para controlar as pandemias mundo afora, infectologistas que tentam desenvolver vacinas com recursos escassos e um bilionário esclarecido como Bill Gates —, pouca gente vinha dando prioridade ao assunto. Depois de um plano de recuperação econômica de nada menos do que US$ 2 trilhões, anunciado pelo governo americano, acho que ninguém mais achará absurdo investirmos algumas dezenas de bilhões de dólares para atacar a questão que, hoje, representa a maior ameaça de destruição em massa da nossa civilização.

Tudo isso, meus amigos, está longe de ser o começo do fim. Mas pode, perfeitamente, ser o fim do começo da velha humanidade— e o alvorecer de uma consciência. Habitamos um planeta desgastado por séculos de egoísmo e ganância. Um planeta que precisa entender de uma vez por todas que fronteiras, hierarquias, compartimentos, muros, cercas, unidades familiares, preconceitos religiosos, elitismo, farinha pouca, meu pirão primeiro, nada disso nos salvará do risco de extinção. Só a solidariedade vai nos livrar dele e, humildemente, acredito que assim será.

Este texto contém certo grau de ousadia. É um daqueles escritos que, daqui a dez anos, poderão ser citados como exemplos de lucidez ou de obtusidade. Se o mundo aprender com essa crise e fizer avanços, eu serei bestial. Se o caos se instalar, como acreditam os arautos do pânico, serei uma besta. É um risco, sem dúvida. Teria sido menos arriscado falar sobre a crise de identidade nas áreas de marketing das empresas ou sobre a falência do modelo publicitário baseado em percentagens de mídia, mas acho que tudo seria profundamente irrelevante diante do cenário global. Como otimista, claro, acredito que vou me dar bem nessa escolha. O tempo dirá.

*Crédito da foto no topo: Irina Devaeva/ iStock

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • A importância de ter olhares diversos na construção de uma marca

    Desafios e as estratégias necessárias para manter uma reputação sólida em um mundo em constante mudança

  • Como o líder brasileiro se destaca no mercado estrangeiro?

    Saiba quais são as características nacionais valorizadas fora do País e o os pontos de atenção aos executivos locais