Vacinas, reputação e pós-propósito

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Opinião

Vacinas, reputação e pós-propósito

O mundo pós-pandemia que exige que as empresas ajam de forma prática e enérgica para solucionar desafios econômicos, sociais e ambientais das comunidades nas quais atuam


29 de janeiro de 2021 - 14h43

(crédito: Kunal Mahto/iStock)

Diante do descalabro e da máxima ‘tudo pode piorar’ a que estamos sendo submetidos diariamente, há muito tempo nessa pandemia, chama a atenção o episódio das vacinas que estão sendo negociadas por um grupo de empresas privadas. Segundo o jornal Valor Econômico, três fatores estão emperrando a iniciativa e levando o grupo que reúne cerca de 60 nomes fortes da economia brasileira: a dificuldade de arregimentar as 33 milhões de doses pretendidas, divergências quanto ao percentual que deverá ser doado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a repercussão negativa na sociedade e especialistas de saúde pública.

É nesse último fator que irei me aprofundar aqui. A compra de vacinas pela iniciativa privada, e não pelo governo, tem como premissa doar metade do lote ao SUS e o restante ser usada por funcionários dessas empresas e seus familiares. E, obviamente, levantou questionamentos junto à opinião pública se a medida não representaria “furar a fila” de vacinação no País. Por enquanto, apenas grupos prioritários, como idosos e profissionais da saúde receberam as incipientes e insuficientes doses do imunizante. Foi justamente esse ponto da proposta que fez grandes empresas “saltarem do barco”. Nomes de peso como Itaú, Santander, Vale, Petrobras e JBS decidiram deixar o grupo.

Há um forte dilema ético neste movimento empresarial. A mudança no ambiente social, político e empresarial está criando uma série de novos desafios para os CEOs. Empresas e suas reputações, conquistadas a partir de árduo processo, podem rapidamente colocá-las à prova arriscando a perder ou ganhar pontos nesse jogo cuja soma pode ser zero ou de alguns dígitos, dependendo da postura e do valor corporativo dessas organizações.

Afinal, estamos falando de grandes grupos empresariais que têm dentro de suas estruturas departamentos de comunicação, de marketing, de compliance, jurídico, além de consultorias e agências de comunicação externas. Tudo, em tese, para evitar crises e avaliar riscos de imagem. Mas, mesmo com todo esse aparato, acabam cometendo deslizes, alguns bastante comprometedores. Reputação nada mais é do que um estoque acumulado de percepção que determinada marca goza em diversos grupos. Não só decisões de negócios impactam a reputação de uma empresa, mas principalmente sua visão de mundo e atitudes junto à sociedade, seus funcionários e acionistas.

Ao longo da pandemia, fomos positivamente surpreendidos com as empresas fazendo sua parte com doações de recursos, equipamentos, respiradores, víveres e de campanhas de conscientização para ajudar no combate ao coronavírus. No entanto, nessa questão das vacinas, ao furarem a fila, acabam escancarando o que já ficou mais do que exposto nessa complexa crise que estamos atravessando: a abismal desigualdade social do Brasil, criando uma divisão do País em castas.

Mesmo após a AstraZeneca e o fundo de investimento Blackrock, que possui participação na farmacêutica, terem declarado que não têm vacinas contra a Covid-19 para fornecer à iniciativa privada, o grupo de empresários brasileiros reafirmou que continua a negociar 33 milhões de doses do laboratório, que distribui o imunizante em parceria com a Universidade de Oxford. Larry Flink, CEO da Blackrock, aliás, é um dos mais entusiastas interlocutores globais da agenda ESG (sigla em inglês referente a compromissos das esferas ambiental, social e de governança). Seria, no mínimo, incoerente, o laboratório que leva investimentos do maior fundo de investimentos do mundo ser conivente com essa decisão. Mas, o capital tem lógicas próprias e geralmente elas são em benefícios de interesses privados, e não públicos.

Há, sim, um grande espaço para ações da iniciativa privada que podem ajudar a sociedade brasileira e apoiar o SUS, que se revelou extremamente necessário nessa pandemia. O exemplo norte-americano é bastante didático e nos dá algumas pistas. Devido ao fato de os Estados Unidos não terem um sistema público de saúde como o brasileiro, poderíamos supor que a compra de vacinas pelas empresas lá estivesse ocorrendo em grande escala. No entanto, isso não está na agenda do mundo corporativo. Por outro lado, há um movimento de grandes conglomerados em oferecer recursos aos governos federais e estaduais, sem a pretensão de substituí-los.

A Amazon e a Honeywell, ofereceram tecnologia para melhorar a administração de cadastros, o transporte das vacinas e as filas; a Starbucks disponibilizou suas unidades para dar maior capilaridade à vacinação; o Bank of America chegou a oferecer um estádio de futebol para o mesmo fim e a Sodexho mobilizou seus gerentes para identificar e reverter a indisposição de seus funcionários ao imunizante. Tudo isso no suporte, e não na concorrência com o setor público.

O mais interessante é que essa discussão ocorreu na mesma semana em que houve a edição do Fórum Econômico Mundial, em Davos, que teve como tema The Great Reset (O Grande Reinício), em referência ao mundo pós-pandemia. Este mesmo mundo também é pós-propósito, que exige que as empresas ajam de forma prática e enérgica para solucionar desafios econômicos, sociais e ambientais das comunidades nas quais atuam. Todos os grupos envolvidos demandam mais das corporações, incluindo ações que coloquem as pessoas acima dos lucros, liderança em assuntos não necessariamente ligados aos negócios, mas caros à sociedade, e uma transparência radical sobre como operam.

**Crédito da imagem no topo: Audioundwerbung/iStock

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