Suyane Ynaya: “crio pelas pessoas que vieram de onde eu vim”

Buscar
Publicidade

Inspiração

Suyane Ynaya: “crio pelas pessoas que vieram de onde eu vim”

A editora de moda da Elle Brasil e cofundadora da agência Mooc reflete sobre as transformações da indústria criativa e fala sobre suas origens e referências


25 de maio de 2022 - 10h20

Suyane Ynaya é editora de moda da Elle Brasil e cofundadora da agência Mooc (Crédito: Divulgação)

A expectativa do mercado publicitário de ver pessoas negras criando como pessoas brancas faz com que os negros ainda sejam excluídos da indústria. É o que acredita Suyane Ynaya, editora de moda da Elle Brasil. “É preciso entender que nossas estruturas não vêm de fora, muitos de nós não estudamos no exterior. Não tivemos acesso ao grande mercado no passado, e muitas vezes não tivemos referenciais familiares para exercer o que fazemos hoje. Quantos de nós somos os únicos exercendo nosso ofício em nossas famílias?”, reflete. 

Mas a mudança está acontecendo, de acordo com a stylist, que também é diretora de arte, mãe de dois filhos e cofundadora da Mooc, agência de projetos multidisciplinares que há sete anos busca levar um olhar sem estereótipos dos jovens negros para marcas como Ambev, Facebook, Netflix, Converse e Coca-Cola. “A Mooc surgiu dessa vontade de mostrar que criamos, sim, e que nossa base vem de nossas vivências e histórias“, diz. A agência já foi reconhecida com um Emmy Internacional, pelo Effie Awards, Webby Awards e pela Forbes e GQ como um dos empreendimentos que melhor usam a tecnologia e a responsabilidade com o planeta como ferramenta nos negócios. 

Confira a conversa com Suyana, que passou parte da vida na comunidade de Juscelino, na Zona Leste de São Paulo, já vestiu artistas como Liniker, Xênia França e Seu Jorge, e também foi entregadora de panfletos, vendedora de loja e babá antes de entrar no universo dos grandes editoriais de moda brasileiros e internacionais. 

 

Que características ou habilidades você considera essenciais em uma mulher na liderança? Como você as desenvolve e as alimenta regularmente? 

Acho que saber fazer o que ela se propõe. Hoje em dia exercemos muitas atividades nas redes sociais, mas qual, de verdade, sabemos aplicar na vida real? Esse ponto me pega bastante, pois já fui muitas coisas, passei por muitas atividades até chegar aqui, mas hoje entendo que sei exercer somente o meu ofício. Também entendi que o plus do que faço vem de muito aperfeiçoamento em aspectos importantes para dizer que tenho o conhecimento de fato. 

A carreira que decidi seguir é muito instável, pois há muita rotatividade referencial. São muitas referências e muitas histórias, e você precisa pelo menos saber 80% desses processos. Aprendi a criar uma característica para o meu [processo], como tantas outras pessoas fazem, pois nos prendemos ao que já existe e aplicar o mesmo fluxo é mais fácil. Mas sinto a necessidade de criar o que eu acredito, de sentir que sou eu em cada criação. Mesmo com tudo mudando novamente de referências, “sou eu”. 

Você já teve algum tipo de sentimento de autossabotagem? Como lida com essa situação e que dicas dá para mulheres que se sentem assim nos projetos, áreas e lugares em que atuam? 

Todos os dias. Sou uma mulher ansiosa, descobri minha depressão em meio à primeira gestação. Vivo com a autossabotagem batendo na porta da minha cabeça todos os dias. Não posso dizer que aprendi a levar essa situação, pois é algo que me engole, mesmo entendendo que sou uma mulher preta no meio de muitas pessoas brancas que estão exercendo seus ofícios há muitos anos e com estruturas absurdas. Diante disso, me pergunto se quero mesmo continuar, e eu continuo todos os dias. Não por mim, porque sei que sou um grão em meio a muitas movimentações nesse planeta. Eu continuo pelos meus filhos, pois preciso criar um referencial e um futuro forte para eles. Eu crio pelas pessoas que vieram das mesmas comunidades e estruturas de onde eu vim, pois quero que elas entendam que vai dar certo, sim, mesmo às vezes parecendo que não. 

Eu não vou salvar os negros do racismo, muito menos da desigualdade desse país. Esse não é o meu papel aqui. Eu quero somente gritar tudo o que me foi preso durante vinte e poucos anos, e minha arte me possibilita fazer isso. Ela me dá abertura para dizer que eu existo e para colocar quem existe nela também. Então, a única coisa que posso dizer para mulheres que se sabotam como eu é que “é você por você e não tem ninguém mais”. Se a gente não cria essa força mais que física — sim, acredito que seja mental — para fazer nossos processos acontecerem, seremos engolidas por nós mesmas. Mas, além do nosso psicológico, existe um sistema de apagamento, então parece que precisamos ser mais fortes ainda. Então, sei que eu posso aconselhar com muito carinho e amor, mas o dia a dia é uma via de mão dupla. 

Você pratica a “sevirologia”, a arte de se virar com o que se tem. Como ter resultados impactantes com recursos limitados? 

Pratiquei por muito tempo esse método já existente, e foi a maneira que encontrei de fazer o que eu amo. Foi um dos processos mais importantes pelos quais passei, pois foi quando consegui exercer meu ofício com o que tinha em mãos. Muitas pessoas já criaram e exercem esse método todos os dias, mas não sabem dar um nome para ele. Hoje, muitas coisas mudaram e os acessos são diferentes, mas foi esse método, de acreditar no que eu tinha como possibilidade de criar um mundo, que me trouxe até aqui. 

Acredito que resultados impactantes vêm muito mais do propósito por trás dos projetos do que da imagem em si. De criar histórias que prendam as pessoas e comuniquem algo importante, pois estamos repletos de imagens lindas sem nexo por aí. Antes de pensar em uma imagem bonita, é preciso ir atrás de uma história potente e real. Depois, podemos buscar meios de fazer a imagem acontecer, mas isso vem como consequência. Eu mesma sempre usei celular nas minhas produções. O meu processo anterior com a sevirologia funcionava assim. 

Você também é cofundadora da Mooc, agência de cultura e tecnologia que tenta trazer um olhar sem estereótipos dos jovens negros. Para você, quais são esses estereótipos e como quebrá-los na indústria da publicidade e fora dela? 

A Mooc traz isso desde o seu início, pois foi fundada por jovens negros com perspectivas diferentes e iguais ao mesmo tempo, mas que não conseguiam sair da bolha do que o sistema queria. Os estereótipos sobre nossos corpos vêm de criações e limitações da indústria publicitária, uma lógica sem lógica da indústria branca, que teima em concluir que não temos base criativa. Mas tudo isso acontece porque nossas bases partem, muitas vezes, de fora da estrutura de onde eles vieram. 

A expectativa de ver pessoas pretas criando como pessoas brancas é o que faz o mercado nos excluir todos os dias. Mas é preciso entender que nossas estruturas não vêm de fora, muitos de nós não estudamos no exterior, não tivemos materiais fortes para começar nossas criações. Não tivemos acesso ao grande mercado no passado, e muitas vezes não tivemos referenciais familiares para exercer o que fazemos hoje. Quantos de nós somos os únicos exercendo nosso ofício em nossas famílias? Quantos de nós tivemos grandes estruturas para conseguir entrar nesse mercado preparados? A Mooc surgiu dessa vontade de mostrar que criamos, sim, e que nossa base vem de nossas vivências e histórias. 

Acho que essa mudança está acontecendo. Ela vai demorar, e não posso romantizar e dizer que já mudou muito, mas estamos caminhando para essa transformação. Já existem muitos diretores mostrando o poder de suas criações. Há diversas pessoas pretas conseguindo adentrar nesses espaços publicitários, e sabemos bem a dificuldade que é furar essa bolha. Então, contribuir para essa mudança, para mim, é continuar. Criar e resistir com nossas armas, que são nossas bases históricas e tudo o que estamos aperfeiçoando diariamente. Que pessoas pretas aperfeiçoem suas bases e não caiam na ilusão de que suas criações estão sempre ótimas. Que busquem aprender cada vez mais, estudem suas possibilidades e cheguem ao seu melhor. 

Quais mulheres inspiradoras você segue, lê e observa? Como elas te inspiram? 

Eu sigo e leio muitas mulheres, mas minha mãe e minha irmã são a base da minha existência. Posso me inspirar em muitas, mas meu dia a dia acontece porque tenho dois seres fortes que me seguram firme. Elas entendem todo o caminhar que precisei e ainda preciso fazer todos os dias, todas as dores, amores, choros e sabores de quem sou e preciso ser. Acho que não tem base maior para mim do que essas duas, elas são potentes e acreditamos uma na força da outra para sobreviver e resistir. Parece clichê, mas é muito real. 

Quando você foi nomeada nova editora da Elle Brasil, em 2020, falou muito sobre a importância de se posicionar e acreditar nos sonhos. Qual é o sentimento de ser uma mulher da periferia que chegou no topo? 

Sempre fui chamada de “negra raivosa”, pois não tenho medo de me posicionar contra pessoas racistas. É simples. Sempre fiz isso, mesmo entendendo que é algo usado contra pessoas pretas quando vetamos manifestações preconceituosas. Mas o racismo conseguiu me calar por um bom tempo, porque eu precisava alimentar meus filhos. Se você é uma pessoa que denuncia o racismo, automaticamente você é um inimigo de muitos brancos e vai ficar sem emprego, pois a grande estrutura empregatícia do Brasil ainda é branca. Então me calar e criar foi a minha forma de resistência, e chamar meus amigos e pessoas em quem eu acreditava, que me ajudaram a estar aqui, foi minha maneira de coexistir com eles. 

Esperam palavras doces quando nos posicionamos como pretos no Brasil, mas esquecem que apanhamos um caminho inteiro até chegar aqui. Então me sinto muito orgulhosa de ter parado aqui, de ter vindo de onde vim, das minhas criações e conquistas. Eu não saí da comunidade de Juscelino sozinha, eu tive muitas pessoas que cruzaram o meu caminho para me ensinar um pouco do que elas sabem. Acreditar nos nossos sonhos é a base de uma sobrevivência preta, mas quando vivenciamos ela, entendemos que muitas vezes o processo não é nada doce. 

A Elle me abriu e abre possibilidades todos os dias, sou muito feliz por estar no lugar que sempre sonhei, mas fora da Elle eu sou a Suyane. Às vezes esquecem de todas as caminhadas que pessoas pretas fizeram até chegarem aqui, e posso dizer que talvez 90% delas não foram lindas e tranquilas. Então é importante pensar em como foi chegar aonde estamos e mirar em onde queremos descansar. Às vezes esquecemos dessa reflexão: a correria ainda não acabou, mas onde pretendemos descansar? Penso nisso todos os dias. 

Publicidade

Compartilhe

Veja também

  • Vozes que inspiram: a ascensão feminina nos podcasts

    Vozes que inspiram: a ascensão feminina nos podcasts

    Cris Bartis, Juliana Wallauer, Branca Vianna, Camila Fremder e Isabela Reis debatem o impacto das mulheres no mundo dos podcasts

  • Quem está filmando as histórias das mulheres?

    Quem está filmando as histórias das mulheres?

    Desequilíbrio de gênero e de oportunidades na indústria audiovisual faz com que as oportunidades para as mulheres no cinema ainda sejam escassas