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Acordo entre Disney e OpenAI redefine uso de IA no audiovisual

Especialistas analisam impactos do acordo bilionário sobre narrativas criativas e propriedade intelectual

i 19 de dezembro de 2025 - 6h01

Rei Leão, filme de animação produzido pela Disney em 1994 (Crédito: Divulgação)

Rei Leão, filme de animação produzido pela Disney em 1994 (Crédito: Divulgação)

O investimento de US$ 1 bilhão da Disney na OpenAI marca um novo capítulo na relação entre grandes estúdios de entretenimento e a inteligência artificial generativa.

O acordo, anunciado na semana passada, permite que cerca de 200 personagens dos universos Disney, Pixar, Marvel e Star Wars sejam utilizados pelo Sora, plataforma de criação de vídeos por IA da OpenAI, com início previsto para 2026.

A parceria autoriza a geração de vídeos sociais curtos que envolvem não apenas os personagens, mas também seus ambientes icônicos, figurinos e adereços. As empresas destacam que o acordo não contempla o uso de semelhança física ou voz de talentos.

Além disso, a Disney passa a ter acesso às APIs da OpenAI para desenvolver produtos e experiências próprias, inclusive para o Disney+, e seus funcionários poderão utilizar o ChatGPT.

O investimento também prevê a possibilidade de ampliação da participação acionária da Disney na OpenAI, sujeita a negociações e aprovações corporativas.

Mudança de postura

O movimento chama atenção por ocorrer em um contexto no qual grandes estúdios historicamente se posicionaram de forma crítica ao avanço da IA, sobretudo pelos riscos associados à violação de direitos autorais e à reprodução de estilos e designs protegidos.

Ao optar por um acordo formal com uma das principais empresas do setor, a Disney sinaliza uma mudança estratégica.

Para Léo Xavier, sócio-fundador da consultoria Môre, a parceria representa uma virada pragmática na postura dos grandes players do audiovisual.

“Durante muito tempo, os estúdios adotaram um discurso defensivo em relação à IA, focado em riscos e processos judiciais. Agora, a lógica começa a mudar: sai a contenção e entra a participação ativa nesse ecossistema”, afirma.

Segundo ele, ao se aproximar da OpenAI, a Disney busca ocupar uma posição de influência em vez de apenas reagir ao avanço da tecnologia.

Criatividade em expansão

Do ponto de vista criativo, Xavier avalia que o acordo reforça uma tendência já observada nos estúdios mais avançados: a de que personagens deixaram de existir apenas em narrativas lineares.

“Eles se tornaram linguagens e sistemas simbólicos. A IA funciona como um catalisador dessa expansão, abrindo espaço para múltiplas possibilidades narrativas e visuais”, diz.

Na avaliação do especialista, o uso de personagens no Sora amplia a experimentação criativa e acelera ciclos de produção e teste de ideias.

“Isso abre caminho para formatos mais dinâmicos e híbridos, nos quais diferentes versões de uma mesma narrativa podem coexistir e se adaptar a públicos, contextos e momentos distintos”, explica.

Há também uma oportunidade clara para a hiperpersonalização de conteúdos, com experiências mais interativas e expansões de universo que não dependem exclusivamente dos modelos tradicionais de produção audiovisual, tornando o conteúdo mais fluido e responsivo.

A parceria pode ainda ser interpretada como uma forma de a Disney estabelecer parâmetros para o uso de seus ativos em ambientes de IA. Para Xavier, no entanto, trata-se menos de retomar controle absoluto e mais de exercer influência.

“A lógica da IA generativa é distribuída e imprevisível. Estar ao lado de quem desenvolve a tecnologia permite ajudar a definir limites e boas práticas”, explica.

Ele acrescenta que, no médio e longo prazo, o impacto tende a ser uma redefinição de papéis no mercado criativo, com maior valorização da curadoria, da direção criativa e da visão autoral.

Contrato como fronteira

No campo jurídico, o acordo formal altera significativamente o enquadramento do uso de propriedade intelectual por sistemas de IA.

Segundo a advogada Mariana Piovezani Moreti, especialista em propriedade intelectual, a formalização transforma a IA em um agente autorizado dentro da cadeia de exploração econômica da Disney.

“O uso deixa de ser um risco jurídico e passa a ser um uso legitimado contratualmente. É o contrato que define onde a IA pode ir e onde ela não pode”, afirma.

De acordo com Mariana, contratos desse tipo costumam estabelecer limites claros quanto à finalidade, escopo estético, território e tempo de uso, além de prever deveres de governança, controle de outputs, rastreabilidade e auditoria.

Caso haja extrapolação desses limites, o problema deixa de ser uma infração difusa e passa a configurar descumprimento contratual.

Novo padrão de mercado

Esse modelo contribui para reduzir conflitos entre grandes detentores de catálogo e plataformas de IA, mas não resolve todas as disputas do setor.

“Ele traz segurança jurídica para as partes envolvidas, mas não responde às questões estruturais relacionadas a autores individuais, artistas independentes e pequenos estúdios, cujas obras continuam sendo usadas para treinamento de modelos sem negociação direta”, pondera a advogada.

Embora o acordo não crie um precedente jurídico formal, a especialista avalia que ele pode estabelecer um novo padrão de mercado.

“Na prática, sinaliza que o uso de IA não é necessariamente ilícito, desde que autorizado, e que há valor econômico suficiente para justificar licenciamento, limites e governança”, diz.

Esse movimento, segundo ela, pode fortalecer a pressão para que outros detentores de direitos também negociem acordos semelhantes.

Autoria e responsabilidade

As questões de autoria e responsabilidade permanecem sensíveis. Mariana explica que a inteligência artificial não é considerada autora, e que os personagens continuam pertencendo à Disney.

O usuário pode ter direitos limitados sobre o conteúdo gerado, dependendo do grau de intervenção criativa e dos termos do contrato, mas sempre subordinados ao licenciamento.

Já a plataforma assume responsabilidade ativa para garantir que os conteúdos permaneçam dentro do escopo autorizado e não prejudiquem a integridade da marca.

Mesmo com contratos robustos, os riscos não desaparecem. A advogada aponta desafios relacionados à reputação da marca, ao uso indevido por usuários e à necessidade de garantir que modelos treinados deixem de gerar conteúdos licenciados após o fim do acordo.

“Se esse bloqueio não for técnico e claro, o risco de exploração indevida após o término do licenciamento é alto”, afirma.

Criações em IA

Em 2023, a Disney Pixar se viu envolvida em uma onda de geração de imagens inspiradas no estilo visual do estúdio, impulsionada pelo Bing Image Creator, ferramenta de IA da Microsoft baseada em tecnologia da OpenAI.

À época, a plataforma chegou a bloquear o uso do prompt “Disney”, medida que se mostrou temporária. Posteriormente, o termo voltou a ser aceito, mas com distorções no nome da marca, como variações de “Disney Pixar”, que apareciam nas imagens geradas, evidenciando as limitações dos bloqueios técnicos.

Em abril deste ano, o lançamento do DALL·E 3, da OpenAI, impulsionou uma trend de imagens inspiradas no estilo do Studio Ghibli, estúdio japonês conhecido por animações desenhadas à mão, como Meu Amigo Totoro e A Viagem de Chihiro.

O estúdio não se manifestou oficialmente, mas declarações antigas de seu cofundador, Hayao Miyazaki, voltaram a circular. Em 2016, o cineasta classificou a arte gerada por IA como um “insulto à própria vida”.

Ainda em abril, personagens da Turma da Mônica passaram a ser reproduzidos em tirinhas criadas por inteligência artificial.

Em nota, a MSP Estúdios afirmou acompanhar os debates sobre IA e reforçou o compromisso com inovação e responsabilidade, sem adotar medidas para coibir o uso naquele momento. A empresa destacou, porém, a importância de discutir limites e mecanismos para evitar aplicações ofensivas ou desrespeitosas.

Já na indústria musical, em maio, a Deezer informou que músicas totalmente criadas por IA representam cerca de 0,5% das execuções na plataforma, mas que até 70% dessas reproduções são consideradas fraudulentas.

A empresa passou a restringir esse tipo de conteúdo de mecanismos de descoberta e curadoria editorial.

O Spotify, por sua vez, afirmou intensificar investimentos para coibir usos abusivos da tecnologia, removendo conteúdos enganosos ou que infrinjam direitos de nome, imagem ou voz, embora ainda não sinalize publicamente faixas criadas com IA.