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Opinião

Assumindo a cabeça grisalha

A faixa de 60+ está cada vez mais online (69%), possui um smartphone (44%), usa as redes sociais (34%), mas só aparece em 8% de toda a publicidade como personagens ou pessoas reais


2 de março de 2021 - 13h47

(Crédito: Alina Kvaratskhelia/ iStock)

Sei que isto já está mudando — e torço muito para que mude mesmo —, mas é difícil não pensar no aparecimento dos primeiros cabelos brancos como um momento memorável e, para alguns, incômodo. Até há pouco tempo, muitos de nós brigávamos com nossos fios sem cor, tentando arrancá-los ou cobri-los com tinta. Eu nem pude me dar ao luxo de tentar evitá-los, eles me fazem companhia desde os 17 anos de idade, momento em que sou batizado com apelidos como “cinza”, “grisa”, “algodão”, que duram até hoje. Mas agora, aos 40, e com mais cabelos brancos do que nunca, venho convidá-los a uma reflexão sobre não evitarmos mais as cabeças grisalhas: nem as nossas, menos ainda as dos outros. A obsessão do marketing com os jovens parece interminável. São artigos, ensaios, estudos e cases que tentam a todo momento experimentar fórmulas para lidar com esse grupo tão heterogêneo e de mudanças rápidas de comportamento. No entanto, enquanto as estratégias de engajamento dos jovens continuam a dominar a pauta, outra faixa etária chama atenção — ou pelo menos deveria — pelo gasto médio de 7 bilhões de euros em consumo de bens e serviços por ano. Por que será, indago, que este grupo está sendo cada vez mais marginalizado pela publicidade? Os maiores de 60 anos, o mercado cinza ou os surfistas prateados, como costumam ser chamados, detêm cerca de 80% da riqueza no Reino Unido e 70% nos EUA. E, amigo, eles gostam de gastá-la. Os desembolsos aumentaram, em média, 5,5% ao ano na última década, em comparação aos apenas 1,2% dos compatriotas mais jovens. A empresa de consultoria de gestão global, AT Kearney, projeta que, globalmente, o poder de compra das pessoas de 60 anos ou mais chegará a US$ 15 trilhões em 2021.

Os números são importantes porque mostram que a proliferação do consumo global não é mais impulsionada pelo aumento da população. Um relatório do McKinsey Global Institute de 2016 afirma que, em 2030, o crescimento populacional, então bastante desacelerado, será responsável por apenas 25% do aumento do consumo mundial. Os 75% restantes virão de nós, indivíduos que já existem e que tendem a consumir cada vez mais. Sendo o aumento do volume de pessoas com mais de 55 anos mais rápido do que o aumento de qualquer outro segmento, podemos esperar que esses irão gerar mais da metade de todo o crescimento do consumo nos mercados desenvolvidos. Em outras palavras, os maiores gastadores do mundo serão os idosos — se é que poderemos nos referir ao grupo 60+ como idosos num futuro próximo.

Atualmente, estamos passando por profundas mudanças demográficas e sociais, e essa faixa etária está adotando cada vez mais a mídia digital: eles estão cada vez mais online (69% vs. 14% em 2000), possuem um smartphone (44% vs. 18% em 2013) e usam as redes sociais (34% vs. 17% em 2013). E, no entanto, só aparecem em cerca de 8% de toda a publicidade como personagens ou pessoas reais. Ainda assim, estudo recente da SunLife com 50 mil babies boomers descobriu que 89% acreditavam que as marcas não estavam interessadas neles, 74% pensavam que nunca foram representadas na publicidade convencional e 72% acreditavam que a representação de pessoas com mais de 50 anos era um estereótipo desatualizado. Mais da metade, 57% de todo o conteúdo fornecido pelas marcas, não é significativo para pessoas com mais de 60 anos. Claramente, é uma grande oportunidade para os profissionais de marketing, visto que, aparentemente, não apenas o exercício de forma e linguagem segue errado, mas, principalmente, o trabalho de inovação e desenvolvimento de produtos parece completamente abandonado do prisma desse grupo mais maduro de consumidores.

Para sair apenas do diagnóstico e da lamentação acerca da inércia do nosso mercado, acabei recorrendo ao mercado chinês com um exemplo salutar e de boas práticas. Vem de uma empresa chamada Taobao. Fundada pelo Alibaba Group, a Taobao é um marketplace com sede na China. A plataforma, que abriga mais de 200 mil marcas, foi comparada ao eBay por causa de seu modelo de vendas onde os usuários podem vender mercadorias de três formas: por negociação, preço fixo ou leilão. O aplicativo é um social commerce, ou seja, uma combinação de rede social e compras em um só lugar.

Pois bem, em 2018, para atingir os clientes de cabelos grisalhos, o Taobao colocou um recurso online, em fevereiro, chamado “conta familiar”, permitindo que os usuários vinculassem suas contas às de seus parentes. Uma vez vinculados, os membros da família podem ajudar uns aos outros. Na prática: muitos jovens passam a ajudar seus pais ou avós com configurações, a manipulação de seu próprio dinheiro, cadastro dos meios de pagamento, a correta inclusão de informações para a conclusão compra etc. Assim, o social commerce coloca rapidamente os não familiarizados com a plataforma em contato com seus parentes por meio de janelas de bate-papo em tempo real. Para que o foco se mantenha na eliminação das fricções durante o processo compra, o aplicativo garante que os itens colocados no carrinho não são visíveis para o ajudante, mantendo assim a privacidade do decisor da compra. Resultado: 350 milhões de novos usuários se cadastraram na “conta familiar” desde então.

A mobilização não ficou restrita a essa funcionalidade. Num projeto ainda mais ousado, o Taobao iniciou um programa chamado Taobao College For Seniors, em Hangzhou, ensinando essa geração sênior sobre como aproveitar ainda mais a experiência de compra online. Cerca de 11 mil alunos idosos no distrito de Shangcheng participaram do curso com 40 horas/aula presenciais que devem ser expandidas para outros municípios do país em breve. Ah, mas estamos falando da China, você poderia argumentar. Evidentemente que há questões de estilo de vida específicas da cultura: não é incomum para as famílias chinesas verem três gerações sob o mesmo teto, e os avós encarregados das tarefas de compra de para toda a casa. Não é estranho que os mais velhos precisem pedir dinheiro aos filhos em idade produtiva para fazer isso com frequência e que, então, a “conta família” tenha um sentido único e particular para os chineses. Proponho, então, pensarmos sob outra perspectiva. Não importa de que país você seja, sua avó simplesmente não usa a internet da mesma maneira que você e ela tem um conjunto diferente de prioridades. Ela também não consegue enxergar a tela e prefere falar com os filhos ou netos a falar com o suporte técnico. Não é uma nativa digital, portanto, fluxos de navegação fáceis para alguns podem representar problemas para outros. Me parece que esses são atritos universais a serem superados ao projetar plataformas para os mais velhos. Não me parece distante do Brasil, com seu analfabetismo funcional, a realidade das premissas identificadas no parágrafo acima. Até quando teremos que dar a volta no globo para uma conversa séria e prática sobre esse tema? P.S.: Parabéns à Globo pelo The Voice +, algo genuíno, digno de crédito.

*Crédito da foto no topo: Novendi Dian Prasetya/iStock

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