Escutar também é verbo

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Opinião

Escutar também é verbo

Escutar é uma arte e vale para tudo, de relacionamentos a feedbacks profissionais, mas é preciso exercitar a escuta ativa, de fato, inclusive nas conversas com os clientes


18 de outubro de 2022 - 6h00

Crédito: Shutterstock

Minha primeira experiência relacionada com escuta de que tenho lembrança foi no final dos anos 1990, quando assisti a um episódio da série Seinfeld (1ª temporada, episódio 4 – Male Unbonding), no qual o protagonista, Jerry Seinfeld, dizia aos amigos que iria romper a amizade com um cara que ele reclamava que não o ouvia. Para provar para si mesmo que isso era verdade, no meio de uma conversa num almoço ele disse que iria viajar para o Irã no verão, que fora contratado pelo Hezbollah para um show de stand up comedy e que seria feito no idioma farsi. Pronto, ele havia provado para si mesmo o que ele desconfiava. Alerta de spoiler: o amigo não esboçou nenhum tipo de espanto e continuou falando sobre amenidades. Amizade formalmente rompida!

Recentemente, navegando por aí fui impactado por uma frase do autor Rubem Alves: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil”.

Já me disseram várias vezes que eu sou um resolvedor de problemas, acho que existe uma possível causa para isso, talvez eu seja um bom escutador, talvez não tão bom, apenas acima da média. Explicarei, olhando para trás: sou, e já fui bem mais, uma pessoa bem tímida, até o final da minha juventude eu ficava mais quieto ouvindo tudo que falavam em minha volta. Vendedores de uma loja de rua se aproximando de um cliente, a linguagem corporal e as desculpas que o cliente em questão dava, conversas em família e adultos em geral. Talvez com isso, acredito (talvez não seja) que eu sou mais de escutar do que de falar.

Somando Seinfeld, Rubens Alves e minhas experiências pessoais, fizeram com que esse tema fosse cada vez mais um ponto de atenção na minha vida. Estou sempre avaliando, mesmo sem querer, se as pessoas a minha volta estão realmente se ouvindo.

No mesmo período que eu me deparei com o texto do Rubem Alves, durante a pandemia, num dia qualquer, eu havia conversado bastante com um amigo por vídeo e, assim que eu desliguei ele me mandou a seguinte mensagem: “obrigado por me ouvir”. Confesso que fiquei um pouco intrigado: não dei nenhum conselho disruptivo, não apoiei, não critiquei, não tive o sentimento de ter feito absolutamente nada, só ouvi. Para essa pessoa, por alguma razão, esse momento foi de extrema importância. Isso também fez com que eu quisesse pensar cada vez mais no assunto. Juntando a isso, é fato que para a maioria das pessoas que procuram terapia/análise a principal reclamação é que elas buscam uma pessoa para as escutarem, acabei entendendo isso na prática. Escutar é uma arte e vale para tudo de relacionamentos a feedbacks profissionais.

Nosso cérebro, por padrão, quer sempre economizar energia, não temos nossa escuta ativa de fato. Quantas vezes percebemos que havia um ar-condicionado barulhento por perto apenas quando ele se desliga? Percebo que hoje em dia, no mundo hiper conectado, as pessoas estão ainda mais “no automático” o tempo todo. Como na letra de Sound of Silence de Simon & Garfunkel: “People hearing without listening”, percebo ao observar as pessoas falando, que muitas vezes não há uma conversa, e sim monólogos desconexos. Existe um olhar típico quando a pessoa entra nesse modo, sabe quando você está contanto uma história que acabou de acontecer com você e você percebe que o interlocutor já está com um olhar “através” de você? Ele não está mais te escutando, ele está esperando você acabar para contar o que ocorreu com ele… isso é muito frustrante. Quando alguém compartilha algo, penso que devemos nos esforçar para não “competir” com a história da pessoa, apenas escutar. Obviamente que eu não acho que deveríamos ficar ouvindo uma história de alguém que não nos interessa, a estratégia de fuga nessas situações fica para outra hora. Um exemplo que acontece com todos o tempo todo: alguém mostra uma foto do filho numa situação qualquer na festinha da escola, o outro já para de ouvir e começa a buscar no celular uma foto do próprio filho numa situação similar. Chato.

Em nosso cotidiano, perceba quantas vezes precisamos repetir a mesma coisa: se era no crédito ou no débito, se a Coca era com ou sem gelo, numa ligação após confirmarem algumas informações para provar que você é você, esquecem o motivo da ligação, que era exatamente a primeira pergunta. Vamos num exemplo fictício ao contrário, imagina uma situação: você entra numa doceira comentando para a pessoa ao seu lado que ela deveria experimentar a incrível torta de Pamonha Vermelha da Tasmânia daquele lugar, um atendente mais atento já pegaria um pedaço pequeno (pode ser bem pequeno mesmo) da iguaria e levaria para a mesa para a pessoa experimentar, se fosse comigo seria surpreendente, inesquecível e me parece simples.

Trazendo para o mundo corporativo, imagine quando nos deparamos com uma situação em que o cliente compartilha um desafio que ele enfrenta durante uma reunião. Lembre-se sempre que é uma excelente oportunidade de captar vários detalhes, nuances, sentimentos, perceber quais valores ele prioriza, precisamos tentar nos colocar no ponto de vista de quem fala, sem julgamentos, estarmos atentos até mesmo nos momentos de maior entusiasmo, na linguagem corporal, tudo importa. Tenho certeza de que, ou por limitação de nossa capacidade de concentração após um certo tempo, ou até mesmo por um pouco de arrogância, simplesmente nos desconectamos, paramos de prestar atenção plena, entramos no modo “eu já sei o que ele precisa”, entramos nesse modo do olhar “através” da pessoa. Com isso, podemos perder uma oportunidade de encantamento do cliente, aquele detalhe, aquele algo a mais que ele genuinamente valorizaria passará fatalmente despercebido.

Confesso que já usei umas três vezes a estratégia do Seinfeld (falar algo non-sense numa conversa), lógico que de uma maneira bem mais sutil do que na ficção, para testar se eu tinha a atenção do interlocutor e, percebi, em todos os testes, que eu falava sozinho. Minha questão não é sobre ser ou não escutado, quero que você repare: você está escutando?

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