Mensure a sua desimportância
Além daquele grupo no qual você está inserido, o que você fez ou faz não tem o significado na dimensão que imagina
Além daquele grupo no qual você está inserido, o que você fez ou faz não tem o significado na dimensão que imagina
Tem um perfil no Instagram que eu gosto muito: @preah_.
Basicamente, o que encontramos por lá é um manancial de fotos bem bonitas de botecos, de pés-sujos. Em cada foto, a imensa riqueza que aqueles ambientes aparentemente simples guardam. Das receitas aos corações devastados do torcedor. Das belezas dos detalhes aos personagens com histórias que tentamos adivinhar. Em uma das postagens, tem um carrossel com o que o Preá chama de “lições de butiquim”. O texto diz: “Seis ensinamentos indispensáveis (que eu aprendi) do butiquim para a (minha) vida”. Butiquim escrito com u e i mesmo, com a palavra acompanhando a pronúncia popular carioca, tipo “fugão”. O sexto ensinamento é o que escolhi como título para estas linhas aqui. Diz a sabedoria do boteco: “Mensure sua desimportância. Centenas de pessoas passam ali todo dia, e você é só mais uma.”
O Giba do Bar do Giba (profundo conhecedor da cultura de boteco) aqui, em São Paulo, em uma ocasião, me contou que adora o caldo de mocotó de um bar em Copacabana. Então, em uma sextafeira, ele pegou a ponte aérea para um fim de semana carioca e não teve dúvidas: parou no caminho para provar o bendito caldo, com uma cerveja gelada. Acontece que ele chegou mais tarde um pouco e o caldo já tinha acabado. Ele tentou jogar um charme: “Não acredito! Saí lá de São Paulo só para essa iguaria daqui, e acabou?”. O garçom não titubeou: “E eu que fiquei o dia inteiro esperando por um cara lá de São Paulo e ele resolveu atrasar?” Naquele boteco, ele não é mais o Giba do Bar do Giba. Ele é, com a bênção da simplicidade, mais um. Os dois riram, e deve ter saído uma cerveja ou duas e uns quitutes para rebater a vontade do mocotó. Ser desimportante tem dessas coisas.
Quando cheguei ao mercado publicitário de São Paulo, fui a uma festa do Clube de Criação, com a equipe da F/Nazca. Um criativo mais badalado da época estava todo pimpão. Um garçom passou por ele e não parou. Ele entendeu aquilo como um acinte e voltou ao garçom com a frase: “Você não sabe quem eu sou?”. O garçom respondeu o óbvio: “Não!”. Ele completou dizendo algo sobre a quantidade de prêmios que ganhou naquele ano e pegou a sua bebida. O garçom ficou sem acreditar. Eu fiquei sem acreditar. Mensurar a desimportância é saber que, para além daquele grupo no qual você está inserido, o que você fez ou faz não tem o significado na dimensão que imagina. A grande maioria das pessoas realmente não liga, não sabe e não está lá muito interessada em saber se você é multipremiado em festivais internacionais ou subiu ao palco de Cannes. Talvez elas até perguntem o que você fez que elas possam conhecer, mas é um talvez. E sobre o episódio do garçom, vale o ensinamento do Preá para botecos e afins: “Seja gentil com quem te serve. O trabalho de outra pessoa é o que possibilita que tudo aquilo funcione.”
“Uma vez por semana, durante uma hora, sente-se numa esquina de sua cidade e contemple os passantes. Tente imaginar a variedade das vidas, a dignidade de todas. Se você tem filhos, faça o exercício duas vezes por semana. Será de grande ajuda para aceitar que a vida deles vale a pena, mesmo que não corresponda em nada aos seus sonhos.”
Quando li esse texto do Contardo Calligaris demorei anos para entender a dimensão do que estava sendo dito. Essas palavras ficaram martelando, foram discutidas na terapia e ainda hoje me pego nelas. Olhar para além de nós mesmos em tempos de discursos sobre a importância de construção de uma marca pessoal pode não ser uma tarefa exatamente simples de realizar. Até porque entre essa marca pessoal e o egocentrismo exacerbado, as fronteiras podem ser mais umbilicais do que imaginamos. É complicado, eu sei. Todo mundo posta, todo mundo é foda, todo mundo fala de si mesmo na espera dos brabos e brabas. É arriscado ficar de fora desse círculo. Mas veja bem: nem tudo ali é verdade ou fato consumado. No boteco, por exemplo, nada do que você fala sobre si mesmo será extremamente relevante. Na real, ali o que importa é saber se a cerveja está gelada ou se a sardinha foi frita agorinha mesmo. O que nos leva a outro ensinamento da postagem: “Se esforce para ouvir você mesmo. Antes de sair falando qualquer coisa com qualquer pessoa, converse contigo. Se nem você quer se ouvir, imagina os outros”. E, venhamos e convenhamos, todos nós já esbarramos com uma figura que passa a noite dizendo “eu isso, eu aquilo, eu quando tava lá fiz mais isso”. Dá um cansaço, não?
Um outro fundamento que considero válido para mensurar a desimportância é ampliar o círculo de contatos para um âmbito maior do que o seu mercado de trabalho. Na pandemia, morei por seis meses na praia de Camburi e aprendi a ouvir melhor as pessoas ao meu redor. Sem a pressa da cidade, sem os códigos de vestimenta do trabalho, porque eles não me adiantaram de nada. O pescador não me trazia um peixe mais fresco pelo meu cargo, a minha caipirinha não saía no capricho na barraca do Rafa porque eu conquistei uma conta, o meu lugar no restaurante não ficava garantido pelo crachá na mesa. Tudo era sobre entender verdadeiramente o lugar e as suas pessoas. E perceber que você é só mais um por ali. Tanto que uma medida do que eu considero sucesso por lá foi dada por uma tosse. Eu estava tossindo seco na rua quando passou o Paulo, pescador dos bons, rei dos camarões. Ele me disse: “Tosse seca? Vou pegar um xarope de guaco da Dona Mariazinha”. Em dez minutos, havia um pote de maionese sem rótulo e com um líquido escuro e doce na minha casa. E não é que o tal do guaco curou mesmo? Sucesso ali é saber que se pedir com gentileza, o mercado separa as bananas que passaram do ponto para você dar para os passarinhos. Sucesso é ser reconhecido de longe pelo rei dos vira-latas da minha rua, o Capone. O sucesso ali é uma coisa besta. É mensurar a desimportância de ser só mais um na fila do peixe, do pão ou da cerveja gelada.
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