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Opinião

Meu cérebro eletrônico faz quase tudo

Muitas vezes olhamos o novo com o olho do velho. Insistimos nas mesmas histórias, soluções e processos


5 de março de 2018 - 15h06

Na minha bolha, temos sessões semanais de filme e pipoca. A curadoria é alternada na família, seguindo entre filmes independentes, blockbusters de aventura e animações japonesas. Quando chega minha vez, entrego nossa sorte às recomendações dos serviços de streaming, num dos meus jogos preferidos: partindo das nossas histórias favoritas, seleciono o filme relacionado mais interessante e repito a dose, chegando a alguma coisa inesperada depois de meia dúzia de cliques. Uma coisa que leva à outra que leva à outra que leva à outra. Sempre vale o risco — genialidade e diversão adoram se esconder atrás de resultados improváveis.

Foi assim que chegamos em 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e Arthur C. Clark, numa noite de domingo. O filme de 1968 é simplesmente lindo. Tem uma narrativa lenta e visualmente poderosa, cuidadosamente elaborada para telas gigantes de cinema 70mm. A direção de arte é incrível, especialmente nas cenas internas das espaçonaves, referência estética de toda uma época.

O personagem mais fascinante da história é o computador HAL 9000, modelo de ponta em inteligência artificial, capaz de percepções subjetivas. Sua personalidade foi criada com a colaboração de Marvin Minsky, cientista do MIT, especialista em cognição e pioneiro da inteligência artificial. É demais acompanhar a percepção elaborada 50 anos atrás, numa visão crítica, rica e genuína de assuntos hoje tão presentes no cotidiano. Principalmente se imaginarmos que Minsky inspirou Clarke, que inspirou Kubrik, que inspirou Minsky e gerações futuras de seus alunos. Uma ideia levando à outra levando à outra, em qualquer ordem possível, criando cenários imprevisíveis e expressões emocionais que até agora definem o rumo dos nossos medos e desejos.

Exceto pela sua lente-olho, até quase o final do filme conhecemos o computador apenas por sua voz, sua inteligência e sua sensibilidade. “Incapaz de cometer erros”, HAL é responsável por conduzir para Júpiter uma equipe científica a bordo da nave Discovery 1. A missão, descobrir o impacto de um monólito responsável por disparar evoluções cognitivas, é desconhecida por todos, exceto pelo computador, para que fossem evitados julgamentos precipitados e erros humanos.

Lá pelas tantas, evitando que questões levantadas pelos tripulantes colocassem a missão em risco (talvez alterado pelo próprio poder do monólito), Hal deixa de ser apenas inteligente e passa a tomar decisões mais criativas. Inventa um problema inexistente e inicia um plano aparentemente ilógico para retomar o controle da nave, o que resulta na morte de quase todos os cientistas e seu próprio fim. Termina permanentemente desligado pelo único sobrevivente, contra quem travou uma batalha fria, na qual demonstrou muito mais emoções que seu oponente.

Arriscar o mundo das ideias fora da caixa deu muito errado para Hal e, por extensão, para seus colegas humanos. Afinal, ele fora desenvolvido para resolver problemas, não para inventá-los. Concebido no meio da guerra fria, no nascimento das ciências cognitivas, 2001 definiu que as possibilidades abertas diante de computadores mais capazes que humanos causavam mais arrepios de pavor que de excitação. Computadores criativos demais passariam a ser uma ameaça, deixariam de ser previsíveis, obedientes, e poderiam nos colocar em situações para as quais não teríamos outras respostas a não ser nos deixarmos dominar por seu poder inexorável ou terminá-los definitivamente.

Cinquenta anos depois, nos encontramos diante de ciclos ininterruptos de pequenas inovações, onde centenas de microinterações diárias com cérebros eletrônicos nos apresentam um mundo de possibilidades e problemas inéditos. Diante deles, criamos novos comportamentos, novas ideias, novas configurações para nossas vidas. Nós nos colocamos numa situação na qual todos somos, inevitavelmente, mais criativos. Poderia ser diversão pura. No entanto, diante dos novos desafios, muitas vezes olhamos o novo com o olho do velho. Insistimos nas mesmas histórias, nas mesmas soluções, nos mesmos processos. Do que, afinal, temos medo?

 

*Crédito da imagem no topo: farakos/iStock

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