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Opinião

Mudança de hábitos

Os novos modelos comunicacionais mudaram a dinâmica de poder e influência, o que exige maior transparência, dinamismo e coragem


25 de janeiro de 2022 - 11h07

(Crédito: Shutterstock)

O caso data do final de 2021, mas por uma série de razões ainda ressoa e vale a pena abordá-lo e colocá-lo em perspectiva pelas várias implicações que tem. Para divulgar uma nova funcionalidade de seu aplicativo – um botão que calcula as emissões diárias de carbono de seus clientes -, o Bradesco lançou pouco antes do Natal uma campanha digital que trazia um vídeo do grupo de influenciadoras Verdes Marias. Nele, as irmãs sugerem a redução do consumo de carne às segundas-feiras como uma medida para reduzir o impacto ambiental. “A criação de gado contribui para a emissão dos gases do efeito estufa. Então, que tal se a gente reduzir o nosso consumo de carne e escolher um prato vegetariano na segunda-feira?”, dizia uma delas na publicação. O vídeo faz referência à campanha global “Segunda sem Carne”, que propõe que nesse dia as pessoas preparem suas refeições sem proteína animal.
Foi o bastante para a peça publicitária causar a ira do setor agropecuário, que reagiu indignado à campanha, com representantes que passaram a defender o encerramento de contas no banco. Em meio à reação, a publicação foi retirada do ar e o banco divulgou uma “carta aberta ao agronegócio brasileiro” em que “lamenta o ocorrido” e desautoriza o vídeo, ressaltando que “tal posição não representa a visão desta casa em relação ao consumo de carne bovina”. Logo no primeiro dia útil do ano, a segunda-feira 3, pecuaristas realizaram churrascos em frente a agências do Bradesco como forma de protesto contra o polêmico vídeo. A ação realizada em estados como São Paulo, Mato Grosso, Tocantins e Ceará foi chamada pelo grupo de ruralistas de “Segunda com Carne”.

Há várias reflexões sobre esse episódio. A primeira e mais importante delas diz respeito a uma premissa fundamental para empresas fazerem ações de comunicação e marketing em tempos de polarização: as marcas devem sim se posicionar e ao fazerem isso devem aguentar as consequências dessa escolha. E algumas dessas reações, muitas vezes, virão em forma de ódio. Ao dizer que o conteúdo do vídeo não representa a visão do banco, o Bradesco terceirizou o problema e não assumiu sua responsabilidade no processo do qual é literalmente o “dono”.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, Mariana Prado Moraes, integrante do perfil Verdes Marias, que tem 28 mil seguidores no Instagram, disse que a sugestão de citar a segunda-feira sem carne no vídeo partiu delas, mas o roteiro e a versão final foram validados e aprovados previamente pelo banco. Uma obviedade para nosso mercado, mas que pode não ser entendida assim para quem não lida com o dia a dia de colocar campanhas digitais no ar, ainda mais com uso de influenciadores.

O segundo ponto dessa reflexão diz respeito ao desgaste que ações de comunicação descoladas da visão – e da prática – das marcas provocam não só nas suas próprias reputações, mas na ideia do que é marketing. Casos assim reforçam a noção de que se trata de uma ferramenta vil e enganosa. Não adianta nada o Bradesco ter sido o primeiro banco brasileiro a aderir à Net-Zero Banking Alliance, que faz com que seus signatários tenham que divulgar publicamente suas ações de neutralidade de carbono, com o progresso da descarbonização, metas de curto, médio e longo prazos e permitir a verificação das informações por terceiros. A campanha que gerou a ira dos pecuaristas era parte da comunicação deste pacto. E não passou no teste da credibilidade logo na largada, já que o Bradesco amarelou e voltou atrás ao retirar o filme do ar.

O mais irônico é que o tal do aplicativo para calcular as pegadas de carbono dos clientes do banco, objeto do polêmico vídeo, mostra a grande diferença entre uma dieta à base de vegetais e uma dieta com carne. Nele, há uma série de perguntas sobre hábitos do dia a dia para calcular quanto uma pessoa tem de pegada de carbono. Na parte de alimentação, ao colocar no app uma dieta que contempla o consumo diário de 150 gramas de carne a pegada média mensal fica em torno de 135 kg/Co2. Já uma pessoa que tem os mesmos hábitos, mas que segue uma dieta vegetariana, a pegada de carbono cai para 48 kg/Co2. O Bradesco firmou parceria com a Ambipar e direciona o cliente para uma página na qual ele pode neutralizar essas pegadas por meio da compensação de crédito de carbono. No primeiro caso, o valor dessa compensação é de R$ 6,92 mensais e no segundo, R$2,42 mensais. O consumo de carne eleva a pegada de carbono pelo fato de o setor pecuário ser um dos que mais causa desmatamento. Ou seja, contra fatos não há argumentos.

Em um momento no qual todas as grandes empresas e, especialmente, as do setor financeiro, fazem coro em torno da necessidade da agenda ESG, decisões e ações de comunicação e marketing precisam alinhar discurso e prática. O episódio envolvendo o vídeo da campanha do Bradesco, sugerindo mudanças de hábitos alimentares para redução do impacto ambiental, conseguiu a proeza de desagradar tanto a comunidade dos vegetarianos e veganos quanto os pecuaristas, em um jogo de resultado negativo.

Os novos modelos comunicacionais mudaram a dinâmica de poder e influência, o que exige maior transparência, dinamismo e boa dose de um componente fundamental nesse contexto: coragem. Coragem para insistir com convicções e resistir a pressões e ameaças. Num mundo ideal, coragem também para amargar possíveis perdas financeiras momentâneas que podem ser compensadas com ganhos de reputação e recuperação em médio e longo prazos. Claro que em se tratando de uma instituição financeira, isso pode parecer uma blasfêmia, mas as moedas atuais estão em transformação e novas trocas precisam ser feitas em nome da relevância e da credibilidade.

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