Na hora do vazio é sem risadinha, certo?
O universo da música é pródigo em referências que ajudam a combater o vazio que antecede o processo criativo da escrita
O universo da música é pródigo em referências que ajudam a combater o vazio que antecede o processo criativo da escrita
“Só que sem risadinha, certo? Sem risadinha porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, o povo é mau. Para trabalhar nesse emprego de rapper, você tem que ser mau, entendeu? Sem risadinha, ok? Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou o Rael? Sei lá, meu, aqui os caras é mau”
Nessa pequena vinheta que antecede uma canção no disco AmarElo, Emicida conversa com a sua filha em tom de brincadeira para, em seguida, adentrar em uma música que ele diz escrever como quem manda cartas de amor. AmarElo é um disco que eu considero fundamental no aprendizado de manejar a raiva e tentar transformá-la em outro sentimento. Voltei para o disco porque sempre que não sei como começar um artigo, um texto, busco na música uma forma de me desligar daqueles pensamentos que dizem que dessa vez vai dar merda, você não vai conseguir. O tal espaço em branco, o vazio, o lugar sem a mínima ideia do que virá a ser. E aí, eu me conectei com essa vinheta mencionada como quem questiona: Será que o Antonio Prata passa por isso? Será que a Giovana Madalosso passa por isso? O Jefferson Tenório?
Nos dias de hoje, poderia ficar conversando com o ChatGPT e ele, certamente, abriria vários caminhos para um texto. Poderia até escrever sobre esse diálogo, mas já percorreram bastante essa trilha. Aí, vem o vazio, o oco, o medo, o prazo. Não necessariamente nesta ordem. Por acaso (se é que ele existe), bati o olho em um vídeo do Paul McCartney em que ele disserta com charme a respeito da criação da música Blackbird, que nasceu de uma tentativa frustrada de tocar uma peça de Bach. Esse vídeo criou uma conexão com este vazio da escrita. Não sei se posso usar o termo sincronicidade para definir o acontecido, mas, em teoria, acredito que sim. Porque, segundo uma pesquisa rápida na rede, o conceito se refere a dois acontecimentos, interior e exterior, que ocorrem simultaneamente sem ter entre si uma ligação passível de explicação racional, porém, que possuem sentido para quem observa. Pareceu ser o caso. Espero que seja.
No vazio, desejo uma centelha, uma faísca da criatividade do Paul McCartney. Desde o documentário Get Back, dirigido pelo Peter Jackson, tem sido assim. Ali, Paul está avassalador. A disciplina, a busca pelas novas canções que precisavam nascer para o disco, o processo de testar as sonoridades, a vontade. Sem contar que o cara está na fase mais bonita da carreira toda. O Paul criativo, cantando bem demais, gato, compondo músicas que se tornaram clássicas. Toda aquela inquietude mental florescendo ali, na frente do espectador. Queria uma centelha dessa criatividade com a promessa de usar com respeito e devoção. Comecei pelo Emicida, nada mais justo do que falar dele. Para não repetir o desejo pela criatividade dele, gostaria de ter a capacidade de reunir diversos assuntos, criar pontes e traduzir isso numa oratória que explica temas complexos como quem conta uma história. Quando ele diz por que não gosta de utilizar a palavra elite para designar uma determinada classe, aquilo é uma aula de sabedoria. Queria essa lucidez.
Seguindo na lista de desejos impossíveis, a coragem da Clarice Lispector para abrir um livro com reticências. Clarice dizia não saber lidar com ponto final, por isso se escondia por detrás das reticências. Mas é preciso ter muita coragem para usar um sinal de pontuação um tanto controverso na abertura de um romance. Queria. A coragem do Kalani Lattanzi – que pega onda de peito, em Nazaré –, não seria nada mal, também, mas daria problema em casa. Certeza. E das reticências pulo para o ponto-e-vírgula. Queria a capacidade de antever essa pontuação que dá ao texto uma transformação de Gata Borralheira para Cinderela. Uso ponto-e-vírgula por sugestão e visão das queridas revisoras, que sempre prezam pelo texto. E que já conseguem antever qual sentimento moveu aquela escrita.
Uma lasca da genialidade do Quincy Jones não seria de todo mau. Ou da vida dele. De estar em 1% dos estúdios, shows, festivais, produções em que ele esteve. No momento mais brilhante da carreira do Michael Jackson? Quincy tava lá. Ray Charles, Dinah Washington, Sarah Vaughan, Count Basie, Duke Ellington, Frank Sinatra… você pode nomear. Quincy estava ao lado ou por perto. Ele frequentou mais eventos fundamentais da música que o Nelson Motta. Quer dizer, não tenho certeza. A vida repleta de novos capítulos do Nelson também é um troço a se desejar. Poder escolher um capítulo que seja. Isso entra na lista. Na hora do vazio, aquelas letras do Nelson chegariam preenchendo os recantos, como uma onda no mar.
Falei que eram desejos impossíveis, então posso desejar aquela raspadinha de emoção da Elis no palco, né? Emoções em todos os sentidos e direções do que tem que ser cantado. Se for para desejar um tico de ginga, vou numa referência inusitada. Tem um camarada no Instagram chamado Aubrey Fisher que é tiração de onda. Aquela ginga de quadril nas palavras escritas seria bem-vinda. Vem de moonwalk e tudo o mais. Junto com um sopro da malemolência de um arranjo de metal do Tim Maia para soltar as vírgulas e marcar os pontos. Para sentir o texto em voz alta, Alcione é tiro e queda nos meus desejos. Para marcar o ritmo dos parágrafos, aquela suingada com batida forte do Otis Redding reinterpretando Satisfaction. Para espantar as vozes que teimam em me puxar para baixo, essas incansáveis, uma pitada de Nise da Silveira. Para potencializar as palavras, a contundência sábia da Sueli Carneiro. E assim os desejos vão se sobrepondo em uma lista infinita, em que você começa a se questionar por que os esquecimentos e ausências são múltiplos. E o texto precisa encerrar.
Desejaria, enfim, escrever com a vida do Keith Richards. Um tanto em perigo, mas longevo. Um tanto banal a ponto de quase morrer caindo de um coqueiro, mas seguro de que há sempre uns acordes para despertar a plateia. Na falta disso tudo, é torcer para o acaso (se é que ele existe) encontrar os descaminhos e juntar as palavras.
Compartilhe
Veja também