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Opinião

No Brasil das bets, a agiotagem é profissão do futuro

Sabendo que 44% dos apostadores admitem perder mais do que ganham, é difícil aceitar que ainda digam ser tudo uma questão de escolha pessoal


16 de setembro de 2024 - 14h00

Quando eu era jovem, ouvi uma lenda urbana que dizia que sempre que uma rádio tocava Sympathy For The Devil, dos Rolling Stones, alguma tragédia acontecia no mundo. Daí crescemos e paramos de acreditar nessas bobagens. Contudo, mais real e assustador é a ideia de que a cada vez que um anúncio de aposta é veiculado na TV, a vida de alguém será arruinada. Sabendo que 44% dos apostadores admitem perder mais do que ganham, é difícil aceitar que ainda digam ser tudo uma questão de escolha pessoal.

As bets estão em todo lugar: nos grandes eventos, nos comerciais, nos patrocínios milionários de clubes de futebol e, previsivelmente, agora também nas páginas policiais. O último ano testemunhou a transformação do Brasil em um perigoso paraíso para os experimentos inconsequentes das apostas online, onde a promessa de riqueza instantânea é ainda mais ambiciosa (e duvidosa) que a dos marketeiros de infoprodutos.

Segundo o Instituto Locomotiva, 3,5 milhões de pessoas entram nas apostas por mês. Entre 2021 e 2024, esse número cresceu 7.346%, chegando a 52 milhões de brasileiros — uma cifra digna de qualquer case premiado em Cannes.

A indústria das apostas está arrastando multidões para o seu colo, enquanto todos nós assistimos isso acontecer com a ilusão de que não é problema nosso. Temos a vantagem de termos desenvolvido um bloqueador de anúncios natural e muitos desses anúncios não são direcionados para o nosso demográfico de pessoas bem-educadas e remuneradas, mas, sim, à maior parte do País, onde 70% dos trabalhadores formais ganham, no máximo, dois salários-mínimos.

Esse circo joga com as esperanças de quem mal tem o que comer: 86% dos apostadores estão endividados, e 64% têm seus nomes negativados no Serasa. Dificilmente as empresas de tendências apontarão agiotagem como profissão promissora do futuro no próximo SXSW.

Mas como essas pessoas podem ser tão burras? Bem, 25% dessas pessoas acreditam que as apostas são um caminho rápido para ganhar dinheiro, e 9% as veem como um investimento. Em um País onde normalizamos absurdos como 80 mil homicídios por ano (70% das vítimas são pretas), 1,5 mil feminicídios e um estupro de mulher ou menina a cada oito minutos, uma epidemia de viciados e endividados em jogos de azar é apenas mais uma terça-feira. Não surpreende que muitos vejam nas apostas uma boia salva-vidas, quando, na verdade, é um bloco de concreto amarrado aos pés. Deus é brasileiro, mas, no Brasil, é cada um por si.

E o impacto vai além do bolso. Estamos falando de 67% dos brasileiros que conhecem alguém viciado em apostas. Isso não é apenas uma crise financeira, é uma questão de saúde pública. Apostar virou a nova droga, com a diferença de que ela é empurrada em horário nobre para lares de todo o País, e não na Cracolândia. Pior ainda, 45% dos apostadores relatam prejuízos financeiros, e 30% afirmam que o vício já afetou suas relações pessoais. Ou seja, não estamos apenas destruindo indivíduos, mas famílias.

A ideia de que as apostas são “uma escolha pessoal” é uma piada. Quando empresas investem bilhões para glamourizar o vício ao longo do scroll infinito, e não há movimentação significativa da sociedade civil, fica difícil ignorar o incômodo. O monstrinho está crescendo, ficando mais guloso e barulhento. E nós, aspirantes a salvadores teóricos do mundo e adoradores de futuristas de powerpoint, continuamos ignorando o presente, até que as previsões mais improváveis se tornem nossa realidade.

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