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Como a dopamina pode minar nossa relação com o trabalho

Renata Rivetti, especialista em ciência da felicidade, explica os impactos da busca por estímulos imediatos no mundo corporativo

i 19 de setembro de 2025 - 14h31

(Crédito: Divulgação)

Renata Rivetti, especialista em ciência da felicidade e fundadora da Reconnect (Crédito: Divulgação)

Entre os principais movimentos de saúde do calendário nacional, o Setembro Amarelo lidera em volume de buscas, de acordo com pesquisa da Tunad, empresa especializada em engajamento de marca e inteligência de mídia. O comportamento reflete a crescente atenção do consumidor a questões ligadas à saúde mental.

Esse movimento, que ganha cada vez mais espaço na sociedade, também se reflete dentro das empresas. Para Renata Rivetti, especialista em ciência da felicidade, a busca incessante por dopamina rápida no trabalho, seja em reuniões improdutivas, tarefas pouco significativas ou distrações digitais, precisa ser revista.

Fundadora da Reconnect, diretora do movimento 4 Day Week no Brasil e autora do livro “O Poder do Bem-estar: um guia para redesenhar o futuro do trabalho”, Renata explica nesta entrevista os impactos desse fenômeno na saúde mental, no ambiente corporativo e no futuro das relações profissionais. Mais do que aparentar produtividade, ela defende que é preciso criar ambientes que promovam engajamento real, satisfação e sentido.

Meio & Mensagem – Pode falar um pouco sobre a relação entre “dopamina rápida” e saúde mental? 

Renata Rivetti A dopamina é a molécula do desejo, ela nos movimenta a buscar coisas. O problema é que, se eu busco algo que traz uma satisfação muito curta e rápida, como um like, em seguida já vou querer outro, e nunca vou estar satisfeita. Isso gera vício, uma busca incessante por algo que não vou conseguir preencher. Agora, se é uma busca que me faz movimentar, ir atrás de um estudo, de uma relação ou de um autocuidado, ela traz benefícios. Nesses casos, a dopamina se torna também um hormônio da felicidade, quando deixa de ser um desejo incessante e passa a ser um desejo com atenção e apreciação.  

M&M – Como essa “dopamina rápida” influencia nossa produtividade e motivação no trabalho? 

Renata  Hoje, vivemos uma pseudo-produtividade no ambiente de trabalho. Estamos sempre ocupados, em busca de coisas sem parar, e achamos que temos picos de realização ao mandar um e-mail ou ao responder a uma mensagem. Mas, no fim do dia, 51% das atividades foram de baixo valor e não geraram resultados de negócios. Passamos o dia super ocupados, fazendo mil coisas ao mesmo tempo, num estado de multitarefas, acreditando que isso é produtividade e resultado. Mas, no final, isso é apenas ocupação. Ficamos muito viciados em estímulos rápidos, que trazem esse senso de dopamina imediata, como um like, um elogio ou qualquer coisa que gera um pico de prazer. Mas, no fim, nada disso é realmente significativo. Não é a mesma dopamina que encontramos ao caminhar no parque durante 30 minutos. Como sociedade, nos viciamos nessa busca de preencher, talvez, um vazio existencial com coisas rápidas, que dão um pico de alegria, mas não perduram. E, assim, nos sentimos cada vez mais viciados, cada vez mais em busca disso. 

M&M – Como essa dopamina rápida é traduzida no ambiente corporativo? Como identificá-la no trabalho? 

Renata Hoje, acreditamos que estamos perdendo tempo com 30 minutos de hiperfoco. Não percebemos, no entanto, que no final isso é muito mais significativo em termos de resultado do que simplesmente responder rápido a e-mails e mensagens. Eu me sinto realizada por poucos segundos, mas, no final, isso não se traduz em resultados ou performance. Hoje, 28% das atividades são gestão de e-mails. No trabalho de conhecimento, acabamos buscando elogios, respostas e até likes em mensagens, mas, no fim, não estamos construindo algo realmente significativo. Se compararmos a vida pessoal com a profissional, é como preferir assistir a um vídeo de 30 segundos no TikTok em vez de mergulhar em um filme com foco total. No trabalho, isso se traduz em ficar o dia inteiro no Teams trocando mensagens e, no final, pensar: “O que de fato eu fiz? O que foi relevante? Ou só passei o dia em busca de contatos, trocas e respostas de e-mails sem nenhuma entrega que exigisse parar, pensar e produzir?” 

O ChatGPT, por exemplo, traz respostas rápidas e resolve problemas. Mas existe um estudo interessante do cientista comportamental Dan Ariely: ele mostrou que crianças que desenhavam algo sob comando, como “desenhe um macaco”, não sentiam realização, diferentemente daquelas que criavam livremente. Muitas nem achavam que tinham feito o desenho. É um pouco o que acontece hoje na nossa sociedade: interagimos, recebemos respostas, tudo é dinâmico e imediato, mas o senso de realização quase desapareceu. O ChatGPT faz por mim, eu troquei muitas informações, recebi elogios em pontos específicos, mas, no final, não produzi o que realmente traz significado ao meu dia. 

M&M – É possível concluir, então, que o excesso de estímulos rápidos pode prejudicar a capacidade de foco e de tomada de decisão estratégica? 

Renata O que a gente consegue concluir é que a ideia de sermos multitarefas, que acabou sendo criada nessa jornada de busca incessante, nos faz pouco produtivos e estratégicos. É quase como se estivéssemos apenas sobrevivendo, mas no final sem nem saber o que estamos fazendo. Há dados, inclusive, de que ser multitarefas te faz demorar mais tempo nas atividades. É contraditório, porque pensamos que estamos fazendo tudo ao mesmo tempo, que somos mais rápidos, mas no final eu demoro 40% a mais de tempo, de acordo com um estudo de Stanford. Eu nem sei o que eu fiz no fim do dia. Respondo mensagens, alguém me pergunta algo e eu me sinto de repente motivada em responder… isso é mais estimulante do que uma conversa estratégica mais lenta, que muitas vezes não está me trazendo tanto estímulo imediato. Isso nos faz ficar o tempo todo nesse pingue-pongue. Então, eu estou lá respondendo a mensagem sem qualidade, sem cognição, com menos pontos no QI e estou fazendo tudo ao mesmo tempo só para preencher esse vazio incessante que a gente está sentindo hoje como sociedade. 

M&M – Como você avalia o cenário das empresas nesse contexto? Existe um risco de confundirmos picos de dopamina rápida com engajamento real? 

Renata – Hoje, as empresas falam muito em eficiência, mas elas estão super ineficientes. Criamos um modelo de 8 horas de reunião por dia. As pessoas trabalham em paralelo. Pesquisas apontam que 73% delas estão fazendo outras coisas durante a reunião. Elas são longas, mal administradas e, no final, a gente cria essa cultura de estar sempre fazendo tudo e buscando essa dopamina fora. Além disso, as empresas criaram um modelo de gestão, muitas vezes, de medo, de comando e controle. De achar que, no final, olhar o que o colaborador está fazendo é sinônimo de ter mais produtividade. Isso é o oposto do que a neurociência fala. Se estou em um ambiente que me traz medo e ameaças, vou ficar com o meu centro de aprendizado diminuído. Então, vou ter menos QI, menos atenção e foco. Por isso, precisamos entender que a cultura que foi criada hoje é improdutiva. Ela não é só ruim para saúde mental e bem-estar, mas para as empresas. As pessoas trabalham muito e mal. Ainda temos uma mentalidade no Brasil de valorizar e premiar o workaholic, o presenteísmo. Então, se a pessoa está disponível 10 horas por dia, mesmo que não esteja produzindo, ela costuma ser mais valorizada do que aquela que tem hiperfoco e em uma hora resolve o que precisa.  

M&M – E o que as empresas devem fazer para mudar esse cenário, se todos têm buscado essa dopamina rápida? 

Renata – As pessoas realmente estão nessa busca por dopamina. Temos uma mente divagante, falta de foco, e as empresas precisam agir com mais intenção para mudar esse cenário. Um exemplo claro está nas reuniões: geralmente longas, mal administradas, sem timekeeper e sem pauta. As pessoas muitas vezes entram numa reunião sem nem saber o que vai ser discutido. Essa falta de qualidade já nos leva a buscar dopamina fora, porque não nos sentimos realizados ali. Por isso, as reuniões precisam ser revistas. Outro ponto são os encontros entre as pessoas. Muitas vezes parecem perda de tempo, com small talks que não agregam. Tem ainda o modelo híbrido, que não estamos sabendo muito como lidar. Então, é trazer mais as pessoas para cocriar. Antes, no mundo da gestão, obedecíamos simplesmente porque alguém mandava. Hoje, as novas gerações querem participar, sentir impacto. Isso ajuda a reduzir a busca por distrações externas, porque traz realização no próprio trabalho. 

O futuro do trabalho também passa por rever a lógica da descrição de cargos. Não importa se sou de marketing ou de finanças: se tenho determinada habilidade, posso resolver problemas da empresa. O olhar precisa ser para o indivíduo, fortalecendo suas forças, em vez de manter um teatro de produtividade, o que chamamos de “ghost working”. As pessoas estão lá, mas sem engajamento real. No fundo, isso tem muito a ver com gostar do que faço e sentir realização. Quando isso falta, ficamos presos na busca incessante por prazeres externos. O grande combate a esse ciclo passa por três aspectos da felicidade: mais alegria, com ambientes leves, divertidos, sem peso e sem medo; mais satisfação, que vem de usar habilidades reais para realizar metas e cumprir objetivos; e mais sentido, que nasce de acreditar nos valores da empresa e enxergar impacto do meu trabalho em alguém ou na sociedade, ou até no produto ou serviço que ofereço. Sem alegria, satisfação e sentido, o trabalho vira apenas sobrevivência.  

M&M – E como promover essa mudança?

Renata – As empresas pensam muito nessa discussão como um tema de cultura saudável, como se devesse ser exclusivamente um papel do RH, mas é papel de todos. A liderança tem que estar mais engajada em torno disso, porque eles impactam na saúde mental do time de forma significativa, igual ao cônjuge da pessoa. O próprio colaborador também precisa sair de um lugar de apatia, de estar só sobrevivendo ao trabalho e tentar buscar estímulos e desafios que de fato preencham esse senso de realização. Então, é importante a gente entender a empresa não vai nos fazer feliz, porque estamos falando de responsabilidade co-criada. Cada um faz parte dessa construção. Não delegar isso para ninguém é importante. 

M&M – Você vê alguma relação entre liderança feminina e toda essa nova dinâmica que propõe? 

Renata – Em empresas que adotam semanas de quatro dias ou licença-menstrual, é possível observar um movimento de autorregulação. As pessoas entendem que existe um líder que confia nelas e que espera entregas. Relações de confiança, algo que muitas mulheres tendem a cultivar, geram ambientes de maior segurança psicológica e, consequentemente, mais motivação para o trabalho. É a confiança que gera segurança e que, no final, faz os times serem mais engajados, motivados e entregarem resultados reais de performance, e não de horas trabalhadas.

Estudos mostram que não existe inovação sem segurança psicológica. Ambientes marcados pelo medo não geram isso, porque ninguém consegue criar sob vigilância constante. Hoje, somente 21% das pessoas estão engajadas no trabalho, enquanto 65% fingem produtividade. Então, por que um líder que insiste no controle não poderia inverter essa lógica e falar de forma madura sobre direitos e deveres? Não se trata de ser bonzinho ou deixar de cobrar, mas de cobrar o que realmente importa: entregas e resultados significativos, em vez de controlar exatamente onde e quando alguém está trabalhando. 

M&M – Do ponto de vista individual, como treinar o cérebro para sentir prazer em conquistas de longo prazo, e não apenas em recompensas imediatas? 

Renata – A grande chave é o estado de atenção. É entender que não somos multitarefas, porque nosso cérebro não dá conta de fazer duas ou três coisas ao mesmo tempo. Por isso, ter um detox do celular é fundamental. Parece óbvio, mas na prática ainda fazemos pouco. Passamos o dia inteiro checando notificações e, assim, ser multitarefas e ter o celular na mão o tempo todo se tornou quase um ciclo constante. As pequenas pausas também são muito importantes. Vivemos em um mundo estressante. Ele não vai deixar de ser, mas ajuda criarmos momentos diários para nos recuperar desse estresse. Outro ponto essencial é cultivar relações mais significativas e refletir sobre como estamos realmente preenchendo nosso tempo. Muitas vezes terminamos o dia assistindo Netflix sem parar, sem nem perceber se estamos gostando ou não. Isso é um vício, e é lamentável.

Hoje, o celular já é considerado um vício como tantos outros: falta de presença, de relações humanas mais profundas, de autocuidado, de pausas e de estímulos de qualidade. Então, o exercício é parar, ler um livro, estudar algo, evitar a pressa constante. E, também, aprender a usar o ChatGPT. A IA generativa é maravilhosa para nos ajudar, mas devemos usá-la a nosso favor, e não para responder por nós. Deve ser um grande parceiro estratégico, talvez como um grande estagiário. São pequenos hábitos, todos ligados ao estado de presença. A dopamina mais profunda surge apenas no estado de atenção e apreciação. Essa é a chave para uma dopamina mais permanente, diferente daquela que buscamos em compras rápidas e likes nas redes sociais.