Opinião

Os saberes que ainda nos faltam

Enquanto buscamos relevância pagando pelo efêmero, mestres da cultura popular brasileira nos oferecem o perene

Chiara Martini

Diretora sênior de estratégia criativa na The Coca-Cola Company 15 de setembro de 2025 - 14h00

Começo a escrever este artigo em um voo de Maceió para São Paulo. A viagem foi de férias e parte de um projeto pessoal de me conectar mais com a nossa cultura.

Sempre tive interesse pela cultura brasileira, mas sempre consumi mais o que chegava até mim, então, este processo é de busca e de encontro, mais do que por lugares, por pessoas. Quero conhecer mais brasileiros.

O roteiro foi desenhado em torno do processo criativo da nova coleção da marca de moda artesanal Atelier Foz. Antonio Castro, criador e alagoano, está preparando seu desfile para a São Paulo Fashion Week e abriu espaço para algumas pessoas conhecerem de perto esse processo. Ele nos levou aos lugares onde vivem as pessoas que, junto com ele, estão construindo essa nova história.

A oportunidade de olhar de perto o processo criativo de um artista já é, por si só, algo extremamente inspirador, e, no caso do Antonio, ele eleva essa experiência quando nos conecta com mestres da cultura brasileira e seus aprendizes.

Os mestres são reconhecidos como guardiões de saberes tradicionais. São eles que ensinam, transmitem e mantêm vivas as nossas práticas culturais: a renda, o barro, o maracatu, a xilogravura, entre tantas outras.

O termo “mestre” nasceu naturalmente da nossa oralidade e do aprendizado na prática. É um título relativo ao tempo de dedicação, ao reconhecimento da comunidade e à capacidade de transmissão do conhecimento. Eles não guardam o saber para si, eles foram aprendizes.

Alguns estados criaram políticas públicas para valorizar essas pessoas. O Ceará foi pioneiro, em 2006, com a Lei Estadual nº 13.842, que instituiu o registro de Tesouros Vivos da Cultura, reconhecendo mestres e mestras da cultura tradicional popular. Outros estados, como Pernambuco, Alagoas e Paraíba, adotaram sistemas similares.

Os mestres representam a memória viva da cultura brasileira e garantem a continuidade de práticas ameaçadas pela urbanização, pela globalização e pela falta de apoio. São pilares de identidade local. Em muitos lugares, o turismo, a economia criativa e até a autoestima comunitária estão ligados a eles. Também são fontes de inovação cultural, reinventando técnicas ou criando novas narrativas a partir de práticas tradicionais.

Visitamos algumas cidades, entre elas Capela, onde conhecemos o ateliê do Mestre João das Alagoas, reconhecido como um dos maiores ceramistas do País. Ele desenvolveu uma técnica própria com barro, criando peças que contam histórias do povo, das brincadeiras de rua, dos casamentos e tradições nordestinas, em especial sua recriação do bumba-meu-boi.

Logo ao lado, está o ateliê da Sil da Capela. Ela começou a trabalhar cortando cana-de-açúcar dos oito aos 17 anos, quando sua família precisou deixar sua casa e mudar para Capela. Em 2001, participou de oficinas profissionalizantes do Sebrae voltadas a mães atípicas, capacitando-as em atividades para gerar renda. Em uma dessas oficinas, conheceu o Mestre João das Alagoas, se apaixonou pelas possibilidades do barro e virou sua aprendiz.

Hoje, Sil é reconhecida por galeristas e críticos como uma das maiores revelações da arte popular brasileira dos últimos anos. Assim como João e Sil, existem muitas outras histórias.

Ainda em Alagoas, a Mestra Sônia de Maria Lucena, referência no bordado de renda singeleza. Mestre Rubério Oliveira, artesão em madeira, guardião do patrimônio naval e ferroviário do Baixo São Francisco. No Ceará, o Mestre Noza, ícone da xilogravura e cultura de Juazeiro do Norte. O Mestre Espedito Seleiro, reconhecido nacional e internacionalmente pelo seu trabalho com couro, figura essencial da cultura nordestina e tantos outros.

Nesses encontros, sempre me impressiona a força silenciosa que vejo neles. Não são pessoas atrás de fama, mas são eles que mantêm vivo um saber que atravessa gerações. Guardam nas mãos o que não encontramos em tutoriais na internet. São eles que nos desenham, que nos lembram quem somos, perpetuando nossa cultura por meio de suas obras. Resolvi dividir essas histórias pois é inevitável refletir, em cada um dos encontros, sobre como estamos desconectados desse universo.

Enquanto buscamos relevância e visibilidade oferecendo e pagando pelo efêmero, instantâneo, eles trabalham diariamente nos ofertando o perene. Nós construímos espuma, eles constroem raiz. Entre esses dois mundos existe um abismo que pode nos custar caro. Cada mestre, cada aprendiz é uma fonte de inovação cultural, com técnicas e narrativas que poderiam abrir caminhos criativos para marcas que tanto dizem querer se conectar com o brasileiro. Parece que estamos desperdiçando a capacidade de transformar esses saberes em identidade, construindo pontes reais entre marcas e pessoas.

Entendi, ao longo dessa viagem, que a cultura brasileira, diversa, plural, contraditória, se sustenta nessas pessoas. São elas que mantêm tradições vivas em cidades pequenas, que formam aprendizes, que alimentam mercados locais. Muitas regiões sobrevivem da força dessas mãos e, mesmo vivendo sob enorme pressão diária, elas não deixam de ensinar, perpetuar, resistir. Nós, por outro lado, cedemos à pressão, buscando atalhos com métricas duvidosas.

A cultura brasileira é um tesouro em movimento, que precisa de investimento e reconhecimento. Não basta dizer que “o Brasil é criativo” se não cuidamos de quem mantém essa criatividade viva no cotidiano. Afinal, quem vocês acham que realmente cria legados: nós ou eles?