Opinião

Arquitetura da destruição, versão século 21?

Quando o marketing deixa de ser só estratégia e se torna a força que molda comportamentos e transforma culturas

Igor Puga

Líder de marketing e growth do PicPay 8 de setembro de 2025 - 14h00

Vivemos uma ilusão confortável: a de que somos apenas técnicos de um ofício. Profissionais pagos para vender mais, aumentar market share, criar campanhas memoráveis e “fazer a roda girar”. Mas é impossível negar: fomos nós, marqueteiros e publicitários, que ensinamos o mundo a disputar atenção a qualquer preço.

Fomos nós que cultivamos a ansiedade do consumo imediato, que normalizamos a lógica de que não basta viver, é preciso “performar”. O marketing não apenas acompanhou essa engrenagem — ele foi um dos principais arquitetos do caos em que habitamos hoje.

É duro admitir, mas não há como fugir dessa responsabilidade. A indústria que sempre se orgulhou de “interpretar a cultura” acabou por moldá-la de maneira tão profunda que já não sabemos separar o que é espontâneo do que foi meticulosamente planejado em um brainstorm de agência.

Quando um adolescente define sua identidade por um filtro, quando um político é eleito por uma narrativa mais do que por um programa de governo, quando até causas humanitárias precisam de “branding” para existir — não é exagero dizer que o marketing se tornou uma das principais linguagens do nosso tempo.

E aqui está o ponto mais incômodo: já não somos apenas uma profissão, mas uma ideologia. O marketing deixou de ser ferramenta de negócio para se tornar a gramática dominante da vida em sociedade.

Tudo hoje é “posicionamento”: marcas, pessoas, instituições, países. A pergunta não é mais “o que você é?”, mas sim “como você se comunica sobre o que você é?”. Ao expandirmos nosso território, também diluímos nossas fronteiras éticas. Se tudo é marketing, quem vigia o marketing?

Mas a discussão que precisamos abrir talvez não seja apenas moral ou política. É também metodológica. Se nossa atividade molda comportamentos, como podemos medir se, de fato, estamos provocando transformações culturais relevantes ou apenas alimentando ciclos viciantes de estímulo e recompensa?

Hoje, a maior parte das métricas privilegia o curto prazo: cliques, conversões, alcance, buzz. São indicadores úteis, mas incapazes de capturar mudanças mais profundas — como a formação de novos hábitos, a redefinição de valores ou a cristalização de crenças coletivas.

Hoje, no setor, há uma chocante ausência de discurso sobre “como isso vai mudar o comportamento”. Fala-se muito de tecnologia, de criatividade e da estética do trabalho, mas talvez menos de 1% do debate seja realmente sobre comportamento humano.

O resultado é um marketing centrado em meios: nossas IAs, nossas plataformas de fidelidade, nossas experiências de marca, nossas transformações digitais, mas que frequentemente esquece o fim: provocar mudanças reais e duradouras nas pessoas.

A ciência comportamental já nos oferece lentes para reverter esse vazio. Nenhum profissional de marketing que se preze quer criar ruído que não gera mudança.

Ao adotar os resultados da mudança de comportamento como nosso foco radical, podemos impedir que nosso papel se perca. Podemos ser a geração de profissionais que resgata o poder do setor, que se afasta do jargão interno e se concentra em impacto real.

Somos criaturas que anseiam por controle, e sentir-se incerto sobre um resultado é a forma mais eficiente de travar uma decisão. Não sabe como devolver um item online? Então você não compra. Não sabe para onde vai o dinheiro de uma doação? Então você não doa. Não tem certeza se verá seu dinheiro de volta? Então você não investe.

Aumentar a certeza é, portanto, desproporcionalmente valioso. Da garantia de devolução do dinheiro às avaliações de clientes, do “primeiro mês grátis” até algo tão simples quanto rotular uma lixeira como “aterro sanitário” em vez de “lixo comum” — tudo isso orienta escolhas.

Qualquer idiota pode vender algo reduzindo o preço. Mas criar valor a partir da percepção, da confiança e do contexto exige inteligência, não desconto.

 

Quando o marketing muda comportamento:

1. Nubank e a simplificação radical da experiência bancária

O Nubank não nasceu vendendo “cartões roxos”. Mudou comportamento ao reduzir a incerteza que mais travava os consumidores: tarifas escondidas, burocracia infinita, ligações intermináveis para call centers.

Ao transformar a jornada em algo transparente e digital para o usuário, criou uma mudança cultural: milhões de brasileiros passaram a acreditar que é possível ter relacionamento bancário sem dor.

2. Magazine Luiza e a digitalização do varejo popular

Muito antes do hype do e-commerce, o Magalu investiu em transformar comportamento de compra no interior do Brasil. Usou a rede de lojas físicas como pontos de retirada, ensinou clientes a confiar em compras digitais e traduziu inovação em linguagem simples.

Quem antes desconfiava de “comprar pela internet” passou a incorporar essa prática no dia a dia.

3. Ambev e o Zé Delivery

O app não inventou a entrega de bebidas. Ele mudou comportamento ao conectar conveniência e contexto cultural.

O brasileiro já tinha o hábito da “cerveja no churrasco”, mas não tinha a certeza de acesso imediato. Ao entregar cerveja gelada em minutos, a marca não apenas surfou o digital, mas alterou expectativas de conveniência de toda uma categoria.

4. PicPay e o Pix antes do Pix

O PicPay não criou transferências instantâneas, mas educou milhões de brasileiros a fazer pagamentos de forma digital, social e desburocratizada antes da chegada do Pix oficial.

Ao tornar o ato de transferir dinheiro tão simples quanto mandar uma mensagem, ajudou a pavimentar uma mudança cultural que hoje é natural: falar de “passar um Pix” como verbo cotidiano.

 

Em outras palavras: desafios de marketing são sempre desafios de pessoas. Quanto mais cedo aceitarmos que nossa disciplina não é sobre formatos ou plataformas, mas sobre a psicologia das escolhas, mais úteis seremos dentro das organizações e na sociedade.

O futuro do marketing não está em mais dashboards ou relatórios de performance. Está na coragem de assumir que nossa verdadeira métrica não é o clique ou o buzz passageiro, mas a capacidade de provocar mudanças de comportamento que resistam ao tempo.