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O dono do dado

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Opinião

O dono do dado

É inacreditável pensar que o verdadeiro tesouro são os dados gerados pelo próprio cidadão – o mesmo que escuta todos os dias que seu emprego será substituído por um robô


13 de setembro de 2018 - 15h27

Créditos: Matjazslanic/iStock

Essa é a lógica de um investidor em negócios de AI (Inteligência Artificial), Kai-Fu Lee: quanto mais dados você tem, melhor o produto; quanto melhor o produto, mais dados você consegue juntar; quanto mais dados você reúne, mais talentos você consegue atrair; quanto mais talentos você atrai, melhor ficará o seu produto”. O raciocínio resume bem a nova indústria de dados, para onde vão as plataformas digitais e as redes sociais mas levanta uma questão: quem é o dono dos seus dados?

Li a declaração de Kai-Fu Lee na última edição da revista do MIT Technology Review (edição 121, julho/agosto 2018), no artigo “Rein in the Data Barons”, de Martin Giles, chefe do escritório da revista em San Francisco, Califórnia.

Martin Giles chama as digital big companies como Facebook, Amazon e Google de “data barons”. Diz, e nenhuma novidade nisso, que vivemos hoje em um duopólio. Google, além do sistema de busca de dados homônima é dona também do YouTube, Double Click AdMob, Waze e Nest; Amazon, da Zappos, Quidsi, Twitch, Souq e Whole Foods; Facebook, do Instagram, Onavo, WhatsApps, Oculus e tbh.

Os EUA têm experiência com barões. Antes dos “data baron”, os americanos tiveram de lidar no início do século XX com os “robber barons”, industriais e financistas como Cornelius Vanderbilt, Andrew Carnegie, John Rockfeller e J. P. Morgan. Estes empreendedores construíram monopólios, conglomerados e oligopólios que atingiram tamanhos espetaculares como Standard Oil, American Tobacco, JP Morgan e Union Steel Company. Eram os donos do mundo, controlavam o parlamento e presidentes, moldavam leis a seu favor até que uma pressão iniciada pela imprensa e opinião pública levou o congresso e o governo a obrigá-los a se desfazerem de parte de seus ativos.

Em seu artigo, Martin Giles lembra que agora a situação é outra. As “digital companies” oferecem produtos e serviços inovadores que facilitam e resolvem parte de nossos problemas – e tudo de graça (as Redes Sociais) ou a preços acessíveis. São ubíquos: estão sempre ao nosso lado, acompanham cada segundo as nossas vidas. Essas aplicações nos proporcionam gratuitamente acesso a informação, conexão e diversão. Em contribuição, abrimos generosamente as nossas vidas a estes novos companheiros, compartilhamos todas as nossas experiências: podem ser desde as nossas preferências sexuais, o que gostamos e praticamos, o que procuramos e compramos, o que pesquisamos com frequência, quem bisbilhotamos, onde vamos, o que comemos, o que achamos sobre políticos e candidatos, nossos conceitos e, eventualmente, preconceitos.

É quase impossível evitar que seus dados não sejam transmitidos, mesmo aquelas pessoas mais discretas e arredias. Enquanto estiver perto de um aparelho celular, computador, uma TV conectada ou até uma insuspeita geladeira IP, os dados serão enviados mesmo assim: estão em operação sistemas de envio de dados de áudio ou vídeo mesmo quando seu aparelho está desligado. Nem mencionei as casas conectadas ou os assistentes pessoais – caixinhas de comando de voz como Google Home, Siri Box, Apple Box, Alexa – que vão certamente substituir as telas e celulares e a incômoda necessidade de termos de digitar algo. É só falar e pedir para a caixa: “ligue pra mamãe”, “ligar a TV”, “abrir a casa”, “comprar Malbec”, “entrar na conta bancária”, “chamar o Uber”, “pedir pizza”.

Aos poucos, sem alarde, gratuitas ou com produtos e serviços acessíveis, as big digital companies se instalaram em nossas vidas, destruíram diversos modelos de negócios e tomaram conta. Ficaram gigantes, descomunais. Giles cita números: estudo da Pew Reserach Center mostra que 45% dos americanos adultos acessam notícias no Facebook; investimentos publicitários nos jornais americanos caíram dois terços entre 2006 e 2016 (a maioria do dinheiro foi para o Facebook e Google); 44% de todas as transações de e-commerce nos EUA foram realizadas pela Amazon.

Por que a gente deixou isso acontecer? O ser humano é impelido a seguir a corrente, sofre a compulsão de ser admitido na sociedade, de pertencer. Há muitos anos, quando fui responsável pela estratégia de relações públicas no lançamento da Wine, ouvi o sócio-fundador Anselmo Endlich se referir à teoria do formigueiro.

Não demorei a entender que um negócio cresce quando alguém atende a uma demanda específica das pessoas, algo que as ajude a resolver um problema. O que as pessoas querem é: se antecipe, entenda a nova era de comportamento, seus desejos, crie algo acessível, que tenha uma proposta clara e que as atenda. Feito isso, com alguns empurrões e técnicas, as pessoas serão elas mesmas as propagadoras da marca, vão querer compartilhar a experiência, e o farão com orgulho e felizes, pelo pioneirismo e originalidade da ação. As outras pessoas virão em seguida. Estas falarão para as outras nas redes: “olha que negócio legal, facilita a minha vida, é isso que quero!”. Basta criar e promover este ambiente, este ponto de encontro, que deve ser simples, fácil e confiável. Está criado o formigueiro. Alguns estudiosos dizem que não há nada novo nisso, trata-se da velha psicologia das massas já abordada por Freud (A psicologia das massas e análise do Eu) ou Gabriel de Tarde (The laws of imitation).

Giles fala em outro conceito: diz que as big digital companies chegaram onde chegaram por causa do fenômeno “network effect”, o que chamo de “efeito manada”. As pessoas estão lá simplesmente porque está todo mundo lá: “muitos produtos e serviços se tornaram mais valiosos porque mais pessoas os utilizam”.

Duopólios não são bons para a economia, destroem empregos, impedem a concorrência; investidores evitam entrar neste mercado, as chamadas “kill zones”, aquelas onde serão destruídos pela força e pelo império dos oligopólios. Seguem em direção a outras oportunidades onde poderão crescer e não ser esmagados pelos gigantes na primeira oportunidade.

As ações para frear o duopólio demoraram para chegar. Uma das razões é que na época dos “robber barons” os oligopólios se aproveitavam para aumentar preços. Agora é diferente, lembra Giles, veja o caso das empresas de Redes Sociais que nada cobram por seus serviços.

O sinal amarelo acendeu. Começou pela Europa que aplicou uma multa de 2.4 bilhões de euros ao Google por causa de favorecimento de sua plataforma de ecommerce. Este ano, o CEO do Facebook Mark Zuckerberg passou por maus bocados no Senado americano ao ser confrontado pelos políticos por causa do escândalo da falecida Cambridge Analytics; admitiu que alguma regulação será necessária.

Multas não adiantam, adverte Giles: causam no máximo cócegas nos gigantes digitais. Estes conglomerados dispõem de grandes reservas líquidas, grandes bancas de advogados e capacidade infinita de disponibilidade de caixa. A opção da regulação é um pouco melhor. Refere-se à pressão e leis que obriguem os oligopólios a venderem parte dos seus ativos: o Facebook poderia abrir mão do Instagram e do WhatsApp; o Google, do YouTube, por exemplo.

Uma saída inteligente, segundo Giles, seria o sistema de “data portability”. As empresas digitais manteriam grandes partições de dados de “social graph” para cada usuário. Europa outra vez: o novo GDPR (General Data Protection Regulation) determina a criação de um “machine-readable format”. Caso o usuário decida migrar para uma outra rede social como a Candowell (novo app mobile de fotos e vídeos) ele levará junto todo o conjunto de seus dados – a portabilidade é um direito do cidadão (artigo 20). O que levanta a seguinte pergunta: de quem são estes dados que foram gerados pelo próprio usuário? É da empresa de Rede Social (o que o GDPR denomina ”controller”) ou do próprio usuário? O GDPR é explícito: deve ser do usuário.

O autor do artigo cita o professor de Oxford, Viktor Mayer-Schönberger, que propôs a criação de um “mandato progressivo de data-sharing” que poderia se estender para todos os negócios. Se uma companhia chegasse a um certo nível de market share seria obrigada a compartilhar os dados com outras companhias que os requeressem. A lógica seria a seguinte: quanto mais uma empresa chegasse a um domínio de mercado, mais dados a mesma teria que compartilhar com outras empresas.

É inacreditável pensar que o verdadeiro tesouro são os dados gerados pelo próprio cidadão – o mesmo que escuta todos os dias que seu emprego será substituído por um robô. O que me leva de volta ao início: de quem é o dado afinal? É um ativo meu, já que foi gerado por mim mesmo ou é da digital company, que investiu e desenvolveu sistemas de captura e inteligência de ordenação? E o que, como cidadãos, esperamos que os políticos e órgãos de controle façam para que não fiquemos desamparados (lembrando que vira e mexe um hacker entra na sua conta, rouba senhas e o dinheiro da sua conta bancária ou cartão de crédito)? E o que devemos fazer para que estes dados também não caiam na mão e sejam utilizados por governos totalitários – lembra dos drones de repressão de “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury? Ou o Big Brother, “1984” de George Orwell – que poderiam nos levar a regimes de controle absoluto do cidadão? Estou fechado com o GDPR.

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