O locutor é inocente
Clubismo nas transmissões é tão real quanto correto; não se trata de preferência, mas de uma questão de negócios
Clubismo nas transmissões é tão real quanto correto; não se trata de preferência, mas de uma questão de negócios
Uma das regras básicas do marketing é criar peças de comunicação com o público-alvo da marca em mente. Qualquer profissional que já esteve envolvido com o desenvolvimento de campanhas de publicidade sabe a importância de usar a linguagem e o tom certos, além de referências culturais e estéticas relevantes. Sem estas considerações, as mensagens não são entendidas ou são, simplesmente, ignoradas.
Apesar disso, ainda nos irritamos assistindo partidas de futebol quando o locutor parece torcer por algum dos times em campo. Nestes momentos, nosso fanatismo se sobrepõe ao conhecimento profissional. Esquecemos que o futebol também é um produto. Por ser o clube de maior torcida no Brasil, este fenômeno é especialmente visível quando um destes times é o Flamengo.
Recentemente, assistindo a uma partida da Copa do Brasil entre Flamengo e Atlético-MG, tive uma discussão com alguns amigos revoltados com o que escutavam. Segundo eles – coincidentemente nenhum torcedor do Flamengo – a parcialidade era insuportável, inaceitável e prejudicava a qualidade da transmissão.
Pelas raízes cariocas da Rede Globo e por muitas lendas urbanas (elas começaram antes da expressão “fake news” existir), é comum escutar que isso acontece porque a sua equipe de locutores e comentaristas “torcem pelo Flamengo”. Uma afirmação assim esdrúxula ignora o fato de todos serem excelentes profissionais capazes de separar suas preferências pessoais das obrigações do trabalho.
No caso daquela partida, a verdade é que quem estava errado eram meus amigos, e não a equipe da Rede Globo. Erraram por não entender de marketing.
Naquele jogo, assim como em qualquer outro que envolva o Flamengo, a grande maioria da audiência da TV, seguidores de esporte nas mídias sociais ou torcedores nos estádios, serão desproporcionalmente flamenguistas. O que as equipes da Rede Globo fazem não é deixar a paixão se sobrepor ao profissionalismo, mas simplesmente priorizar seu público-alvo.
A pesquisa de tamanhos de torcida da Datafolha (agosto 2019) mostra que há dez vezes mais flamenguistas do que atleticanos. Nas redes sociais, o quadro não é muito diferente: o relatório do Ibope-Repucom (junho de 2022) do número de seguidores no Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e TikTok do Flamengo mostra que eles são cinco vezes mais numerosos do que os atleticanos (47,2 milhões contra 9,5 milhões).
A isenção ou um eventual apoio ao clube mineiro seria o equivalente a abastecer as gôndolas dos supermercados com os produtos menos consumidos de cada categoria. Uma receita certa de fracasso comercial. Se você encontrasse a sua loja favorita assim, na semana seguinte procuraria uma outra onde seus produtos favoritos estivessem disponíveis. No caso da televisão, as coisas não são diferentes, mesmo levando em consideração a exclusividade dos direitos.
Se a locução não for adequada para a audiência, o torcedor encontrará uma alternativa na web ou simplesmente assistirá aos jogos sem volume enquanto escuta o rádio mesmo.
O clubismo nas transmissões é tão real quanto é correto. Se o time de maior torcida parece ser favorecido pelos locutores, a razão não é uma preferência pessoal, mas sim uma questão prática de negócios.
Locutores flamenguistas são a garantia de um público rubro-negro feliz e que fica ligado até o fim do jogo. Isso garante maiores índices de audiência, maiores receitas comerciais com publicidade e mais recursos para a TV transmitir os jogos com a qualidade excepcional que estamos acostumados.
E o que resta para os torcedores de times menores que se sentem desprestigiados?
Se você se incomoda tanto assim com o clubismo nas transmissões, sempre haverá opções como os canais dos clubes no YouTube ou a sua locução local pelo rádio com narradores igualmente clubistas, só que dessa vez a seu favor. Lembre-se que sempre que o seu clube for o de maior torcida, a lógica se aplicará a seu favor.
As transmissões dos jogos pela TV são um produto como outro qualquer. Precisam ser promovidas, ter qualidade, estarem disponíveis nos canais certos e, usar uma linguagem que atenda às necessidades de seus principais consumidores.
No próximo jogo, não reclame dos locutores. A culpa é do marketing.
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