O marketing entre o lucro e o ESG
O problema não são os critérios em si, mas o choque gerado quando o discurso da marca fica fragilizado pela realidade dos negócios – a necessidade do lucro
O problema não são os critérios em si, mas o choque gerado quando o discurso da marca fica fragilizado pela realidade dos negócios – a necessidade do lucro
10 de fevereiro de 2022 - 17h36
Os indicadores ESG (caso você esteja vivendo em outro planeta, são os critérios que estabelecem a qualidade da sua governança ambiental, social e corporativa) serão o buraco negro das iniciativas de marketing nos próximos anos. Além da complexidade do tema —as ramificações ocorrem em praticamente todas as áreas da atividade empresarial e ainda estamos muito longe de um conjunto de métricas unificadas— a tecnologia permite aos consumidores não apenas contestarem a comunicação das empresas sobre o assunto, mas também verificarem até que ponto elas são consistentes com a realidade.
O problema não são os critérios em si, mas o choque gerado quando o discurso da marca fica fragilizado pela realidade dos negócios – a necessidade do lucro. O caso envolvendo o Bradesco e as iniciativas de redução de consumo de carne são apenas um exemplo local de tensões que estão se espalhando em escala global, na medida em que a ideia de “retorno ao acionista” vai sendo reenquadrada pela questão do retorno para a sociedade – uma tensão que já se antecipavam na eleição de 2018, conforme registrei aqui neste mesmo espaço (https://bit.ly/3L3jEXy).
Como o tema é particularmente sensível para mercados altamente regulados –como o financeiro— é natural que grandes fundos de investimento estejam atentos, para não entrar “na mira” dos reguladores via pressão política originada pela opinião das redes. Mais de 60 Bolsas de Valores no mundo todo já divulgam critérios para composição de índices ESG (eram 5 em 2015) e grupos importantes de fundos voltados para pequenas aplicações já colocam o tema na comunicação com seus clientes. Mas entre os grandes investidores a questão ainda é controversa.
No ano passado o CEO da Danone, um dos principais porta-vozes da sustentabilidade dos negócios foi demitido pelo Conselho, inconformado com os resultados financeiros abaixo da média dos pares, embora a empresa fosse líder de iniciativas ambientais e sociais. A Unilever também esteve no radar das críticas dos investidores: Terry Smith, gestor de um fundo de 29 bilhões de libras que é um dos 10 maiores acionistas do conglomerado, criticou abertamente a diretoria executiva por “perder o foco” ao se fixar excessivamente em questões de sustentabilidade (https://on.ft.com/3rkJIWA).
Quando comento estas coisas com meus alunos, eles me respondem que isto são reclamações de velhos homens brancos, que ainda não entenderam que o mundo mudou (claro que eu me faço de desentendido em relação aos “velhos homens brancos”). Não sei se é uma questão somente de idade e homens brancos –basta ver o fuzuê que o Neil Young causou ao protestar contra o patrocínio de um blog antivacina pelo Spotfy (https://bit.ly/3HjrU3C), enquanto milhares de “jovens estrelas” se calavam. O fato é que boa parte destes gestores ainda vai estar em ação por um bom tempo, e muitos deles são nomes respeitados pelas gerações mais novas de financistas. Da mesma forma, a mudança da base produtiva para atender aos critérios ambientais não é nem simples, nem barata, nem rápida. Em muitos países que estão incentivando carros elétricos, um percentual expressivo da energia que abastece estes veículos é gerada por carvão ou petróleo, para ficar em uma questão óbvia.
Nem tão óbvio é como critérios sobre responsabilidade social se casam com a enorme diferença salarial verificada dentro das empresas, agravada por dois anos de pandemia. Em 1965, o pacote de remuneração de um CEO das maiores empresas dos EUA era 15 vezes maior que o salário médio de seus funcionários. Em 2020, essa diferença chegou a 351 vezes. No caso brasileiro é um pouco mais difícil fazer essa conta pois o formato de remuneração indireta e a falta geral de transparência dificultam a análise, mas basta conversar com pessoas que estão fora do nível executivo para entender a revolta com alguns bônus que foram pagos nos últimos anos. Isso também é uma questão de responsabilidade social, no final das contas.
Como o marketing e a publicidade vão se posicionar entre as redes sociais e os acionistas? Um artigo publicado agora em janeiro no Journal of Marketing Management apresenta algumas pistas. Em “Playing on a moving pitch: foregrounding the impact of sociocultural contexts on social movements and brands” (https://bit.ly/3unNNex), meus colegas da FGV Benjamin Rosenthal e José Bortoluci (junto com Flavia Cardoso, da Universidade Adolfo Ibáñez, no Chile) discutem como o ativismo e o contexto sociocultural afetam marcas e mercados. Em um primeiro momento, mudanças como as que estamos vivendo irão moldar as iniciativas das marcas (como no caso do Bradesco), mas sua “ancoragem” no assunto será um processo bem mais lento, pois enfrenta contextos culturais divergentes (no caso, entre os ativistas e os acionistas). Nas palavras dos autores, analisando o caso dos patrocínios da Nike, não basta apenas dizer “just do it”. É preciso que as organizações demonstrem para os consumidores a razão pelas quais elas tomam suas atitudes (“why do it”). Em um ambiente cada vez mais tecnologicamente saturado, conduzir este diálogo entre a cultura de mudança dos consumidores e a cultura dos acionistas será um processo delicado -mas cada vez mais necessário- para os profissionais de marketing.
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