Pouco Ted Lasso para muito Succession

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Opinião

Pouco Ted Lasso para muito Succession

Adoro as duas séries por motivos muito distintos; uma é sobre a aniquilação da confiança na humanidade e a outra é o fiapo de esperança que nos resgata desse poço profundo


17 de julho de 2023 - 6h00

Ted Lasso nos preenche com uma palavra grudada na porta do vestiário: believe (Crédito: Divulgação)

Talvez você não tenha visto Ted Lasso, nem Succession. E tudo certo. Estamos todos devendo aquela série, aquele meme, aquele livro que uma galera falou. No mundo de hoje, você estará sempre deslocado de um ou de muitos assuntos. Há estudos que apontam que esse deslocamento, essa intensidade de coisas a serem vistas, gera uma sensação ainda maior de solidão. Além de sozinhos, ficamos também com um sentimento de fracasso por não nos sentirmos aptos para acompanhar tudo o que está acontecendo. Como escreveu meu amigo Wilson Mateos, em um texto intitulado “Ode à Frustração”:

“Trabalhe muito, mas tenha qualidade de vida.
Trabalhe muito, mas leia jornais e revistas.
Trabalhe muito, mas leia livros, veja TV e assista os bons filmes.
Trabalhe muito, mas assista aos virais “geniais” que seus amigos compartilham.
Trabalhe muito, mas se atualize sobre seus clientes, os concorrentes e o mercado.
Trabalhe muito, mas estude inglês e mais uma terceira língua à sua escolha.
Trabalhe muito, mas vá à academia.
Trabalhe muito, mas se espiritualize.
Trabalhe muito, mas tenha um tempo pra você.
Trabalhe muito, mas tenha tempo para os amigos.”

Consegui ver Succession e Ted Lasso, em uma combinação ao longo do tempo. Um episódio de um, um episódio de outro, como quem toma uma dose de veneno e já está com um antídoto guardado no bolso para uma golada. Sem dar spoilers, adoro as duas séries por motivos muito distintos. Uma é sobre a aniquilação da confiança na humanidade e a outra é o fiapo de esperança que nos resgata desse poço profundo. Uma é mais próxima da realidade e a outra parece utópica; afinal, ninguém pode ser tão Ted Lasso das ideias. Assistir aos personagens de Succession é mergulhar no que há de mais podre neles e em nós. Assistir aos personagens de Ted Lasso é saber que dentro de todos aqueles seres há muitas fragilidades, mas há sempre o Ted para tirar o melhor deles. E isso deveria valer para todas as relações, mas aí é utopia 100% filtrada.

Há algum tempo, em um processo de concorrência, levamos uma ideia que aqui vou chamar de Xis. Perdemos o processo. Exatamente um ano depois, em outra concorrência, o mesmo cliente foi confrontado com uma ideia que era basicamente igual. Atenção: a gente tinha zero relação com ele. Fosse Succession, ele poderia fingir esquecimento, soltar um “azar o deles” e seguiria em frente. Calhou de ele ser mais Ted Lasso, e isso fez com que a ideia acontecesse entre as duas agências. Sem desmerecer nenhuma delas no processo, ele tirou o melhor das duas partes envolvidas.

É assim que acontece sempre? Óbvio que não. Já aconteceu de apresentar território de marca, com uma ideia que lançava esse novo lugar, com deck repleto de páginas de estratégia e sair por outra agência. É do jogo, acontece, chora na cama que é um lugar quente. Em casos como esses, apesar de haver um lado vencedor, parece que se tira o pior das partes. E a depender da cenoura que está lá na frente, os personagens podem mergulhar mais fundo na sua ambição. É Succession na veia.

Lembro-me de uma história contada sobre uma dupla de criação que escondeu o trabalho da outra antes de uma reunião. Succession! Colocar o nome na ficha técnica, mesmo sabendo que nada fez. Succession! Pensar em uma ideia para uma causa, executar e contribuir legitimamente para a causa. Ted Lasso! Pensar em uma ideia para uma causa, entender que essa ideia dá muito trabalho, fingir que ela aconteceu de verdade, passar a acreditar que aconteceu, pegar o atalho, subir no palco. Succession! Rende bastante esse exercício.

Podemos aplicar essa mesma analogia em coisas muito mais cotidianas. Uma ligação que você foi adiando para a sua mãe, porque sempre estava ocupado demais: tem um caldinho de Succession aí. O Ted Lasso pegaria o telefone, mesmo com a agenda toda encavalada, e diria: “Não, mãe, tô tranquilo. Conte-me tudo.” E ainda assaria uns biscoitos para a próxima visita.

Não cabe aqui, porém, uma divisão entre o bem e o mal. Primeiro, porque é uma ilusão. Segundo, porque é uma premissa muito rasa e somos mais complexos do que isso. Além, claro, do imenso desgaste da palavra e do significado do que seria “o bem” em tempos recentes. Contardo Calligaris dizia que quando pretendemos mudar o mundo, devemos pensar que não estamos à altura do mundo ou das mudanças que imaginamos, porque raramente nos colocamos como parte a ser modificada. Desejamos – ou imaginamos – ser Ted Lasso em muitas instâncias. Mas, talvez, em certas circunstâncias, estejamos mais perto de Succession do que gostaríamos.

Em um texto da atriz Maria Ribeiro, escrito após o fim da última temporada de Succession, há uma reflexão acerca dessa tensão: “Nossa paixão pelos Roy – ou, pelo menos, a minha – não se dá apenas por causa da genialidade das frases, mas também, e sobretudo, pela selvageria da condição humana. Pela precariedade dos nossos instintos. Pela honestidade da violência. No fundo, somos todos animais vaidosos e competitivos, e estamos exaustos de fingir que não.”

Minha paixão por Ted Lasso é dada pelo fato de que a série entra como uma bucha no banho, tirando as cracas da vida. Como aquelas que os nossos pais falavam que a gente tinha que esfregar até sair ou acabar o sabonete. E, assim, Ted Lasso nos preenche com uma palavra grudada na porta do vestiário: believe. Mesmo quando as evidências mostram que não, mesmo quando os fatos mostram que não. Porque talvez a gente dispense tempo demais olhando para essa violência, essa precariedade, e perca a chance de perceber os momentos Ted Lasso ao redor. Uma dose de veneno, uma dose de antídoto, uma bucha para eliminar as cracas da vida. Seguimos esfregando e acreditando.

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