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Opinião

Quem dirige quem? A pergunta que assusta

Acidentes automobilísticos com veículos estrelados parecem expressar submissão dos motoristas à personalidade da marca


15 de maio de 2024 - 14h00

Acho que quase todos acompanharam o triste episódio de um acidente com Porsche, em São Paulo, que acabou matando um motorista de aplicativo. Há não muito tempo, algo semelhante aconteceu também com um Porsche em Belo Horizonte, onde a vítima foi o próprio motorista. Semelhante a esses, houve mais um em Brasília, em que um casal ocupante do carro morreu com o impacto num poste. E mais outro caso semelhante em Jundiaí (SP). Parei a busca no Google porque, confesso, um calafrio percorreu minha espinha e um sentimento de espanto diante da inútil perda de vidas me derrubou.

Não conhecia as vítimas e nem os motoristas. Mesmo assim, entendemos muito a dramaticidade desses episódios que sempre nos pegam no contrapé. Não quero julgar a ação dos autores dos acidentes, alguns dos quais pagaram com a própria vida sua imprudência. Há quem cuidará disso.Mas a palavra-chave que me levou a escrever este texto esconde-se por trás da palavra imprudência e não ela própria. Em nenhum dos casos, me parece, que os motoristas tinham no topo da consciência o sentimento de imprudência. O sentimento dominante deve ter muito mais a ver com a ideia fálica de exercício de poder ilimitado. Um sentimento que transcende a consciência da própria limitação do controle pessoal e do risco iminente.

E aqui, eu chego a um território que entendo melhor do que automóveis. Aliás, mesmo sem ter nunca possuído um Porsche, ou outras marcas com essa pegada esportiva, sempre admirei sua admirável concepção estética, seu design sedutor, o bailado dos carros nas pistas de corrida.

Pois bem, minha intuição, mais do que qualquer comprovação técnica ou analítica, me sugere que uma maravilhosa, poderosa, encantadora criação como essa obriga o motorista a obedecer aos desígnios da marca. E submeter sua personalidade à imposição dela. Daí a pergunta: afinal, quem dirige o carro?

Alguém por quem tenho uma admiração e respeito incalculável já deu essa resposta na Gazeta de Notícias em 8 de setembro de 1882, no Rio de Janeiro. Nessa data, foi publicado um dos mais de duzentos contos que Machado Assis escreveu, chamado: “Espelho, um esboço sobre uma nova teoria da alma”.

O protagonista do conto é Jacobina, um homem de origem social simples que é nomeado Alferes da Guarda Nacional, no Rio de Janeiro. E numa determinada ocasião ele conta a um grupo de amigos o que se passou com ele, durante algum tempo.

Quando se olhava no espelho, via uma imagem esfumaçada e mal se reconhecia. Quando vestia a farda de alferes e se via de forma plena, e com orgulho, como sendo o próprio Jacobina.
A identidade emprestada pela farda de alferes se sobrepunha à original. Em outras palavras, ele era dirigido pela própria farda. Sem ela, voltava a ser apenas o Jacobina de antes.
“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta…” (Machado de Assis)

Qualquer semelhança com os trágicos acidentes que contei no início não é apenas coincidência. É como se “Jacobinas” estivem ao volante conduzidos pelo poder inspirador da marca-farda.
Não acho que são apenas veículos, cujas marcas têm esse poder, de nos representar e nos dirigir. Mais adiante no conto, Machado de Assis diz o seguinte: “Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é alma exterior de uma pessoa…” E nós todos presenciamos muitas vezes essa fragmentação da autoimagem dos indivíduos, os consumidores.
Diante de tudo isso, há uma pergunta de caráter ético que sempre me assombra. E para alguns, mais precipitados, pode até parecer ingênua. Qual é, afinal, o limite da importância e do papel das marcas em nossas vidas? Em que ponto elas deixam de ser uma suprema ferramenta de negócios para se transformarem em “fardas”. Confesso que, até hoje, não sei responder.

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