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Opinião

Será que tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda?

Polêmicas em torno da promoção de apostas on-line reacendem reflexão sobre valores fundantes da propaganda como veículo de comunicação social


25 de setembro de 2024 - 10h49

Debates recentes sobre promoção de jogos de azar (leiam-se bets e jogo do tigrinho) e eventos como prisão e confisco de bens de influencers (leiam-se pessoas em que se confia e que se copia) nos remetem aos valores fundantes da propaganda como veículo de comunicação social: capaz de refletir uma cultura, a publicidade não poderia estimular de modo algum, ideias e ações que pudessem trazer mal-estar ao indivíduo ou à coletividade.

Está no juramento solene feito no dia da colação de grau “prometo comunicar com ética, honestidade e responsabilidade aquilo que me foi transmitido”. Um estudante que passa quatro anos explorando cultura, sociedade, ambientes, indivíduos, discursos e estratégias de comunicação deve reconhecer o impacto de uma imagem ou de uma frase.

Sim, ele também deve conhecer as estratégias de Ernest Dichter, que incluiu a psicologia motivacional no negócio da comunicação a partir da década de 1950 e mudou embalagens, slogans e até a composição dos produtos para criar a esfera do desejo. Não, nem seria possível se inspirar no modo de fazer de Dichter ou dos muitos “Drapers” que o sucederam, afinal, o ambiente, a cultura e a sociedade mudaram. No entanto, sabemos que o ambiente, a tecnologia, a cultura mudam, mas os desejos humanos – ter uma vida significativa e feliz – nunca mudam.

Já que citei Don Draper, o magnético personagem da série Mad Man, tento avançar mais um passo nessa discussão a partir do tema do tabagismo, da indústria do cigarro e seus símbolos. A Marlboro ainda ocupa a lista das 100 marcas mais valiosas do mundo, na posição de número 50 – antecedida pela Coca-Cola, UPS, Volkswagen e sucedida pela Mitsui, Louis Vuitton e Youtube.

Da conta mais importante das agências de publicidade nas décadas de 1960 a 1990, ao cadafalso, o setor tabagista ainda enfrenta o problema do apagamento: não pode anunciar, não pode patrocinar, não pode aparecer e ainda tem que avisar que seu produto mata e causa doenças. Em 30 anos, com todos esses impeditivos, o percentual de fumantes passou de 34,8% da população brasileira em 1989, para 12,6% em 2019.

A publicidade anunciava um estilo de vida romantizado de pessoas jovens, bonitas, ousadas, sexys e plenas. Que estavam fumando. Hoje, quando pegamos uma caixa de cigarros nos deparamos com uma ferida exposta no crânio, coberta de sangue, sobras de pele aparentemente abertas pela ação de um machado, talvez um golpe único. O fundo preto define com precisão o contorno de um homem adulto com os cabelos muito aparados e uma abertura inacreditável no crânio que cobre de sangue seu pescoço. Soa como descrição de cena macabra de filme de horror, mas é a imagem sanitária, tétrica, a propaganda da morte e da dor, que alerta para perigos como o derrame cerebral, aborto, gravidez de risco, da importência, do câncer de pulmão etc. O apelo emocional é elemento essencial para a persuasão na publicidade.

Os jogos de azar vendem a ideia de que subitamente se pode ficar milionário. Ganhar dinheiro para “pagar as dívidas, comprar um carrão, uma casa e nunca mais trabalhar”. Nessa frase estão presentes os “desejos humanos que nunca mudam”, sobretudo no arranjo do capital em que ser feliz e bem sucedido significa ter dinheiro. Jogos de azar, não de sorte, existem há mais tempo do que o papel moeda. Assim como o cigarro, eles não são bons para a sociedade ou para o indivíduo. Se formos fazer uma redução do que traz mal-estar, a reflexão ética vai impedir a publicidade.

Num país como o Brasil, que tem 10,5 milhões de influenciadores, a aposta tem que ser feita na postura do consumidor como capaz de refletir sobre as consequências de seu consumo e o impacto imediato no seu entorno. Obviamente os influenciadores devem ser responsabilizados pelas consequências de ações antiéticas que mobilizam – e temos visto isso, pois muitos deles não juraram solenemente. O ponto de vista ético tem que ser assumido tanto pelo consumidor, como pelo influenciador e pela publicidade.

O fotógrafo Oliviero Toscani publicou em 1996 a obra “A publicidade é um cadáver que nos sorri”, em que lista uma série de “crimes” cometidos pelo setor. Há responsabilidade judicial para uma boa parte deles atualmente, mas para o “crime contra a inteligência” seguimos sem cobertura. É necessário pensar em ética publicitária a partir da incapacidade dos receptores em pensar criticamente sobre as mensagens que assimilam ou ainda de estabelecerem alguma resistência aos apelos emocionais que a publicidade endereça.

Sabemos que o cigarro faz mal à saúde, mas bebidas gaseificadas geladas também fazem. Sabemos que os jogos de azar fazem mal à saúde financeira, mas o endividamento em cartões de crédito também faz. Sabemos que consumir estilo de vida fajuto e construído por influenciadores faz mal à saúde mental, mas a saúde mental não vai brotar mesmo das milhares de mensagens positivas no Instagram.

Existe uma tríade que sustenta a malha social, de acordo com o historiador Peter Burke: a economia, a educação e a comunicação. Se a ética for exercida apenas por um dos elementos da tríade, a malha arrebenta.

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