Dos tempos de gerar ansiedade
Nenhum livro de ficção científica foi capaz de imaginar as redes sociais, que se multiplicaram, trazendo um mar de possibilidades e de problemas pouco discutidos
Nenhum livro de ficção científica foi capaz de imaginar as redes sociais, que se multiplicaram, trazendo um mar de possibilidades e de problemas pouco discutidos
Alto do pódio. A torcida brasileira comemora aos berros e cantos. Filipe Toledo levanta o seu merecido troféu de bicampeão mundial de surfe. Minutos antes, em uma entrevista, Filipe disse as seguintes palavras: “Foram muitos pensamentos ruins, na questão da segurança, se eu ia conseguir ganhar de novo”.
Um salto no tempo, dois anos antes dessa fala. No episódio “Vencendo Demônios”, da série “Make or Break”, Filipe Toledo fala abertamente sobre a sua depressão, um tema não muito compartilhado no mundo do surfe. Filipe era a aposta de todos para ser campeão desde a sua chegada à WSL, mas ele relata: “Quando fiquei perto de ganhar o circuito, tinha algo errado, um sentimento sombrio”. Era uma pressão que ele mesmo impunha, mas que vinha carregada da expectativa externa e da constante crítica sobre ele ter algum problema com ondas grandes.
É possível vislumbrar toda a pressão, uma bomba de sentimentos prestes a explodir. E que explode frente a todos em relatos que exibem uma sensação de não estar 100% no surfe, nem 100% com a família, de não estar 100% em nada. É um episódio tocante, revelador e corajoso. Desde então, Filipe Toledo é o meu surfista favorito no circuito, por quem eu mais torço. Porque, além de redefinir a maneira de surfar algumas ondas, além da velocidade e da beleza das linhas que ele desenha, Filipe é um herói possível.
Quando comecei no curioso mundo da propaganda, lidava com a pressão interna de um iniciante. Será que eu sou bom? Será que é isso mesmo que eu quero? Eram questionamentos comuns em todas as profissões. Havia a indústria de prêmios, mas com muito menos categorias e festivais, o que já trazia uma pressão extra em comparação com a dos outros amigos de diferentes áreas. Era mais suportável, porque sabíamos muito pouco uns sobre os outros. A gente conhecia as peças, as agências, os estilos, algumas pessoas, mas não era algo que tínhamos de lidar a todo instante. Vários profissionais que eu admirava, eu nem sabia como eram os rostos e muito menos que roupas usavam. Desse jeito, era como se fossem personagens imaginários, seres que mais me inspiravam do que me afligiam.
Acho que nenhum livro de ficção científica foi capaz de imaginar as redes sociais. Júlio Verne anteviu uma pá de coisas. A viagem à Lua, mesmo, ele imaginou em 1865. Da Vinci previu e desenhou invenções que só viraram realidade séculos depois. Os Jetsons tinham chamadas por vídeo, entre tantas coisas. As redes sociais não foram previstas com tamanha antecedência. Elas chegaram, foram se multiplicando e trazendo um mar de possibilidades. E, com elas, vieram problemas pouco discutidos e que tendem a se agravar. Talvez porque a gente acredite que não seja possível levantar pontos críticos para algo em que estamos inseridos e que é parte extremamente relevante do negócio para todos nós. E, antes que me batam por críticas ao Linkedln, em um texto que também estará naquela rede, penso que o exercício da reflexão em tempos que não pensamos profundamente sobre quase nada se faz ainda mais necessário. Refletir, enfrentar nossos anseios, desconstruir crenças, ponderar, filtrar e seguir. Vale para qualquer contexto no qual estejamos inseridos. Há um podcast de surfe cujo bordão é surfers are the worst.
Guardo uma relação muito difusa com o Linkedln. Abandonei a rede por duas vezes, por motivos distintos. Na segunda vez, o contexto de pandemia somado à urgência de afirmar “o novo normal”, “as lives vieram para ficar”, entre tantas outras teses, foi demais. Não obstante a ansiedade de não saber quando chegaria uma vacina, eu me vi diante da ansiedade de ter que falar, de ter que postar, de ter que afirmar algo sem muita certeza, de construir uma persona inquebrável. Voltei sem saber o porquê, mas aprendi com o meu dupla Marcão a não ficar descendo demais na timeline, como forma de criar um lugar respirável.
Penso que se estivesse chegando agora ao mercado, estaria triplamente ansioso porque a pressão externa para construir uma persona aumentou demais. Penso nos introvertidos, nas pessoas que fazem um grande trabalho e se sentem obrigadas a gerar mais conteúdo sobre elas mesmas. Penso nas conquistas que agora são exibidas ao infinito e, certamente, fazem alguém (plural) se sentir não tão capaz. Nos textos que criam epopeias para explicar uma ideia que nada tem de mais. Na pouca troca de conhecimento, porque exibimos as vitórias, mas nos eximimos de nos aprofundar nas falhas e derrotas. Penso em uma frase que já usei, mas lamento não lembrar o autor: “posto, logo existo”. O que é um dilema e tanto!
Há pouquíssimo tempo, ouvi a expressão “pandemia do narcisismo” no episódio “Aprisionados”, do podcast intitulado “Elefantes na Neblina”, que recomendo. Não posso falar da felicidade de uma expressão resumir tão bem o sentimento reinante, porque pode ser uma felicidade maquiada. Nunca fomos tão narcísicos, tão brabos com foguinhos, tão fodas, tão retroalimentados. Ao mesmo tempo, nunca fomos tão ansiosos. O que leva a crer que alguém que faz questão sempre de se mostrar infalível pode estar quebrado em algum recanto. Afinal, não é possível que todo mundo seja 100% foda. A constante reafirmação desse campo pode ser apenas uma forma de insegurança. A nossa timeline – quem sabe? – tem ares de embuste.
No podcast do Mano Brown, o Casagrande fala que no processo de reabilitação das drogas, ele descobriu que a vida é mediana. Ele buscava a sensação de estar sempre no pico, mas uma simples peça de teatro, quando sóbrio, revelou que a vida pode ser um pouco sem graça, muitas vezes. E, assim, ele foi tendo que redescobrir prazer nas coisas mais cotidianas. Na nossa carreira, nem sempre estaremos no pico, como os perfis fazem crer. Cabe a cada um de nós a busca por um sentimento de completude que independe de ter que se fazer sempre foda. A vida tem de ter graça também na sua simplicidade. Para Filipe Toledo, a retomada se deu por ele estar sempre perto do que denomina família (amigos inclusos). Quer coisa mais banal e essencial do que essa?
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