Opinião
Pegue o que você tem e vá
Preparar-se é muito válido, mas às vezes o que precisamos mesmo é começar
Preparar-se é muito válido, mas às vezes o que precisamos mesmo é começar
30 de abril de 2024 - 6h00
Acabo de voltar de férias. Desta vez, escolhi usar essa pausa para trilhar o caminho português central para Santiago de Compostela. Queria me reconectar com um lado espiritual que deixei de lado nos últimos anos, e me planejei bastante pra isso.
Li sobre o percurso, conversei com peregrinos experientes, contratei um preparador físico. Pesquisei equipamentos impermeáveis, estudei o clima, o terreno, as hospedagens e até opções de um potencial resgate.
Determinei a quilometragem diária, as paradas para as refeições, os lugares para dormir, o seguro, a passagem. Ensaiei acomodar as coisas na mochila e como cuidar da hidratação e da alimentação. Treinei bastante para amaciar a bota e estudei para cuidar bem dos pés, usando vaselina para evitar bolhas e preparando trocas de meias.
Fiz o meu melhor para entender o desafio e me preparar antecipadamente para ele.
Só que nada nos prepara para o que será a vida. Nenhum plano dá conta do que vamos viver.
Esse recado veio logo no primeiro dia. O ponto de partida que escolhi para percorrer a distância exata não tinha um pórtico ou paisagem instagramável para celebrar o início da jornada. Dei os primeiros passos seguindo a direção de uma única seta em um grande descampado.
Minha programação de parar a cada 5 quilômetros de caminhada foi atravessada por uma ladeira terrível. Meu corpo estafou e precisei parar. Também encontrei peregrinos com quem quis conversar. Uma cantora lírica, uma jovem nômade e um noivo em crise com quem tive papos incríveis, mas longos o suficiente para atrasar minha quilometragem diária. Meu plano começava a falhar.
Tentei compensar o atraso caminhando mais firme e aí que a coisa desandou. Tive uma bolha no pé. Esqueci de comer. A água acabou. Lembrei do que tinham me dito, que “caminho é um paralelo da vida”. Não valia a pena chegar a qualquer custo.
Foi aí que comecei a contornar e aproveitar os imprevistos. Alguns eram mesmo ruins, como a bolha no pé, a falta de comida e água. Mas tive surpresas boas, como bicas d’água, hortelã farta na beira das estradas, uma acolhida com chuveiro, chá quente e bolo em uma igrejinha no meio do trajeto. Encontrar uma parada e descansar em um sofá macio não estava no meu plano, veja só.
O planejamento segue sendo importante, mas descobri a mágica do acaso. Reparei que o terreno planejado não é o mesmo do pisado. Não dá para planejar a sensação de viver aquilo, naquela temperatura, naquele lugar, naquele momento, naquela exata respiração afobada.
A realidade impõe a necessidade do improviso. A chuva cai na hora que bem entende, o galho atravessado bloqueia o caminho, os albergues lotam.
Sigo acreditando no valor do planejamento e da capacidade de sermos protagonistas na nossa jornada. A novidade da vivência no Caminho de Santiago foi descobrir que podemos ter planos mais suaves. É pela leveza que flexibilizamos as ideias originais para torná-las compatíveis com o mundo real.
Os peregrinos que encontrei me trouxeram temas que eu não tinha pensado, mas que eram importantes. Entendi que a sensação de controle que o plano pode nos dar é uma ilusão, algo que gostamos de achar que temos.
Não foi fácil chegar nessa conclusão. Ver minha caminhada “desandar” me causou ansiedade. Ombros tensos, semblante rígido, fiquei preocupada, tentando “compensar” o tempo perdido ao longo das paradas adicionais.
Foi passo a passo que comecei a caminhar mais leve e aberta. Deixei as surpresas me fazerem bem! Parece inacreditável, mas além da acolhida quentinha e macia para descansar, pude participar de cantorias com violão e tudo, que animaram nossa caminhada. E sabe quando é que eu ia planejar ter um instrumento musical numa aventura dessas? Nunca!
É como dizia a mensagem que li no meio da caminhada: “pegue o que você tem e vá”. Levei meu planejamento. Alguém levou suas canções. Outro, o violão. Nos juntamos por puro acaso.
Por isso, penso que não vale a pena esperar o momento ideal. É ao caminhar que encontramos as respostas. Na dúvida, sugiro que você vá para onde está planejando ir. Pode ser um destino, um objetivo, uma missão… Vai ser terrível. Vai ser ótimo. E diferente do que você planejou, o que é muito bom! Tendemos a falhar na hora de prever o carinho, o cuidado e as coisas boas que também precisamos receber ao longo dos nossos trajetos.
Ter um plano é importante, nos ajuda a lidar com os “dias de chuva”. Só que vale também abrir-se para aproveitar o inesperado, seja um dia de sol ou alguém a cantar. No final, se preparar pode incluir também se dar a chance de se deleitar com o que o acaso mandar.
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