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Opinião

A História se repete

A esperança de que “dessa vez é diferente” reforça a crença em nossa excepcionalidade, mas a realidade teima em se impor


2 de maio de 2022 - 14h00

Recentes demissões em diversas startups consolidadas no Brasil, o tombo no valor de mercado da Netflix e a compra do Twitter por Elon Musk mostram histórias que se repetem (Crédito: Shutterstock)

No ano passado fui procurado para dar umas “aspas”, como se diz no jargão jornalístico, em uma reportagem sobre “unicórnios brasileiros”. Mas minha observação que “unicórnios são seres que só conseguem sobreviver em condições ambientais peculiares, formadas por uma junção entre taxas de juros muito baixas, mudanças tecnológicas que se aproveitam de um estoque prévio de fatores de produção acumulados, a ignorância/ganância dos investidores e a crença na seita do crescimento exponencial eterno” não ornou muito bem com o tom geral da matéria e foi sumariamente ignorada.

Não chega nem a ser um pequeno aborrecimento, estou acostumado com isso desde que a primeira bolha da internet explodiu no meu colo (eu fazia parte de uma startup nos EUA que começou a degringolar quando o Alan Greenspan iniciou a subida dos juros americanos no final dos anos 1990 e foi “acelerada” para fora do mercado depois dos atentados do World Trade Center, em 2001).

Mas vendo o “espanto” de algumas pessoas com as recentes demissões em diversas startups consolidadas no Brasil, o tombo no valor de mercado da Netflix e a compra do Twitter por Elon Musk, me parece que tem muita gente na área de tecnologia que acredita nas histórias da Carochinha que os financistas contam. Aliás, sobre isso vale a pena ler um excelente livro do Aswath Damodaran, pai da teoria moderna do valuation, no qual ele destaca que o valor de uma empresa, principalmente em sua fase inicial, depende mais de uma boa história para contar para os investidores do que de uma boa planilha (um resumo feito pelo próprio autor está aqui).

Obviamente, o que explica a queda de US$ 76 bilhões em duas semanas no valor de mercado na Netflix não é a perda de 0,09% do seu número de assinantes em um trimestre, mas o fato de que diante da perspectiva da alta de juros somada com a impossibilidade de continuar licenciando conteúdo antigo produzido por novos concorrentes no mercado de streaming, não é mais sustentável que ela continue sendo uma “fábrica de conteúdo financiada por junk bonds” (títulos podres), como era conhecida no mercado financeiro há anos.

Isso não significa descartar uma “virada” na empresa – o fator de produção mais importante na economia digital são os dados dos consumidores, e neste aspecto a Netflix tem um histórico tanto de dados acumulados quanto de saber analisar estes dados que ainda está há léguas dos recém-chegados no mercado de streaming. Com tudo o que estamos vendo acontecer no mercado de dados online (“apocalipse dos cookies”, escassez de dados de terceiros etc) a Netflix pode ter na publicidade uma fonte de receita importante, em um movimento no mercado de streaming similar ao que a Amazon fez no mercado de publicidade em e-commerce. Ela é provavelmente o maior “banco” de dados sobre consumo cultural da história da humanidade, e isso tem valor. Claro que quanto mais tempo a empresa relutar em fazer esta modificação em seu modelo de negócio, mais perto os concorrentes chegam.

Já os “escorregões” no mercado nacional seguem um roteiro igualmente conhecido. O Brasil fica “barato” em dólar, a renda resultante de aplicações financeiras despenca, aparecem duas ou três histórias de IPOs bem-sucedidos (pelo menos no curto prazo) e segue-se um fluxo de dinheiro para novas iniciativas que apresentam retornos comparativamente bons em tempos de inflação e juro baixo. Aí temos excesso de contratações, enormes investimentos em comunicação e promoção, “provas” de conceito sobre a chamada “parte fácil” da digitalização (por exemplo, documentos em cartório), até a dependência brasileira da economia rentista voltar a dar as caras.

Claro que muitas destas empresas vão sobreviver, seja por consolidação (fusões e aquisições) ou por trocar o mantra do “crescimento exponencial” pelo “cash is king”, mas não me espanto se nos próximos meses – a situação na Ucrânia vai comprometer as cadeias logísticas por no mínimo mais um semestre com grande impacto na inflação e teremos a mais polarizada eleição presidencial desde a redemocratização — alguns dos “unicórnios” da temporada 2020-2021 desaparecerem.

E no meio disto tudo, a economia explica a aquisição do Twitter por U$ 44 bilhões? Não, não explica. Afinal, trata-se de um montante cerca de 38% acima do valor de mercado que a empresa tinha no início de abril (e que já vinha bem esticado, seriam precisos 42 anos para receber em dividendos projetados o valor da empresa). Restam duas possibilidades: Musk quer uma plataforma global para ser o porta-voz do setor de tecnologia na batalha regulatória em curso entre governos e big techs, uma espécie de “Cidadão Kane digital”, com consequências catastróficas para a já limitada “diversidade” da mídia social, ou ele é aquilo que Von Clausewitz, criador da teoria da guerra moderna, definiu como “a imprevisibilidade do gênio militar” – um visionário e executor completamente fora da curva, como Napoleão Bonaparte.

A história não se repete como farsa e depois como tragédia. Ela se repete porque a esperança de que “dessa vez é diferente” reforça a crença em nossa excepcionalidade (como indivíduos, como empreendedores, como geração ou como país). Infelizmente, a realidade teima em se impor. Até a chegada da próxima estação de reprodução dos unicórnios.

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