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Women to Watch

Como anda a representatividade trans na publicidade?

Lideranças refletem sobre avanços e barreiras da visibilidade de pessoas transgêneros e travestis na indústria


29 de janeiro de 2024 - 15h18

Ao longo da jornada de atuação na publicidade no Brasil e no mundo, a comunidade LGBTQIAP+ viveu anos de invisibilidade e marginalização. Para pessoas trans e travestis, o problema é ainda maior. Seja no mercado, como profissionais ou na representação em propagandas, o cenário avançou positivamente, mas ainda precisa caminhar muito para mais equidade e inclusão.

De acordo com a Transempregos, o mais antigo projeto de empregabilidade de pessoas trans no Brasil, a publicidade é um dos 3 piores ramos de empregabilidade da comunidade no país.

“Quando a publicidade emprega pessoas trans para trabalharem no ramo, é porque normalmente o cliente quer diversidade, mas após essa ativação de produtos exigidos pelo cliente, esses profissionais são desligados ou colocados em posições inferiores até que saiam do mercado”, diz Maitê Schneider, co-fundadora do projeto.

O cenário impacta a maneira como as pessoas trans e travestis são incluídas em ações de marcas e representadas na publicidade. Ainda segundo a Agência Mosaico, que tem apoio da Transempregos e do Youpix, a maioria dos influenciadores trans no Brasil nunca foi contratada por uma marca para uma ação publicitária. Quando são, grande parte das campanhas ainda ficam presas ao mês do Orgulho LGBTQIA+.

“Pessoas trans não sabem representar apenas sua identidade, sua transexualidade. Elas podem exercer qualquer papel na publicidade. Ser mãe, filhas, esposas, pais, maridos. Podemos tudo e, por isso, podemos estar em várias ações. Podemos ser CEOs de empresas, construir outros caminhos. Estamos nos esportes e em várias áreas. Trazer essas pessoas para além da questão trans, ocupando outros papeis que elas já ocupam na vida real, é hiperimportante”, reflete Maitê.

O Women to Watch conversou com algumas lideranças trans do mercado, que compartilharam suas visões desse cenário e apontaram caminhos para a transformação do mercado. Confira.

Cenário e desafios 

O principal desafio da inclusão de pessoas trans é o abismo histórico que nos afasta de espaços saudáveis de sociabilidade. Para vencer isso, é preciso agir com intenção. Entretanto, estou otimista. A ausência de profissionais trans nos boards das empresas é um problema com solução. É preciso dar atenção a essa comunidade, simples assim. Mais especificamente, criar políticas de aceleração de carreira e desenvolvimento econômico pensados exclusivamente para trans e travestis.

Ariel Nobre é co-fundador e diretor-executivo do Observatório da Diversidade na Propaganda (Crédito: Divulgação)

Hoje, existe interesse de marcas e agências em representação positiva dessa comunidade. Esse ano, a Lew’Lara\TBWA e a Billboard lançaram uma lista de pessoas trans que se destacam em sua área de atuação, e adorei participar. Não só o interesse mudou, mas o olhar também. As marcas estão mais preocupadas em uma representação trans afirmativa, e isso é muita coisa. Muita gente lutou por isso antes de mim.

O Observatório da Diversidade na Propaganda (ODP) existe e começou a existir depois de uma movimentação do mercado respondendo ao PL 504, e esse PL lesava mais a comunidade trans. Agora, o ODP tem metas exclusivas para pessoas trans que entram em vigor em 2024. Até o final do ano, precisamos assegurar 1% de pessoas trans no quadro funcional. Em 2025, a meta é aumentar mais 1%, para que em 2029 a gente chegue a 2% de gerente para cima.”

Ariel Nobre, co-fundador e diretor-executivo do Observatório da Diversidade na Propaganda 

 

“Ainda é um assunto delicado. Não apenas a inclusão da pessoa trans na publicidade, mas da comunidade LGBTQIAP+ de maneira geral. Ainda é um tema que gera um receio de impacto com público consumidor, de haver algum tipo de comentário ou manifestação em redes sociais. O que vemos, basicamente, são as grandes marcas, mais luxuosas, praticando alguma inclusão. Não vou falar que acontece muito, mas a maioria delas têm em seus anúncios mulheres trans e modelos. Há duas maneiras de ver isso: geralmente, a coisa começa na alta costura e vai descendo para os outros segmentos da sociedade. Ao mesmo tempo, também dá uma sensação de que isso ainda fica no universo do restrito e do diferente, geralmente entre marcas mais inovadoras. Ainda não há uma inclusão plena do tema na sociedade.”

Danielle Torres, sócia da KPMG Brasil 

 

“O principal desafio é as pessoas trans estarem na publicidade. Na Transempregos, que existe desde 2013, estamos com 2.559 empresas parceiras, e os três piores ramos para empregabilidade de pessoas trans são agronegócio, automobilístico e publicidade. Quando a publicidade emprega pessoas trans para trabalharem no ramo, é porque normalmente o cliente quer diversidade, mas após essa ativação de produtos exigidos, esses profissionais trans são desligados ou colocados em posições inferiores até que saiam do mercado.

Maite Schneider é co-fundadora da Transempregos (Crédito: Divulgação)

Em termos de publicidade, quando falamos de mercado, as pessoas trans não estão inseridas. Começamos a falar de pessoas trans na publicidade em 2015, com marcas de beleza, quando a Avon trouxe a cantora Mel Gonçalves para fazer uma campanha. Foi a marca que trouxe isso publicamente e, depois, em 2016, a L’Oréal Paris trabalhou com a modelo Valentina Sampaio. Então o movimento é muito recente e sempre vinculado à moda e beleza, de maneira ainda muito difícil de ser inserido.

A Youpix tem uma pesquisa bem grande sobre a dificuldade da inserção de influencers trans em campanhas. Temos a atriz Valéria Barcellos, que estreou lindamente como protagonista na novela “Terra e Paixão”, da Globo, e todo mundo do grupo dela fez publicidade, mas ela não foi chamada para campanha alguma, por ser uma mulher trans preta. Isso dificulta mais ainda, porque quanto mais marcadores temos, maior a exclusão. De peças publicitárias, então, nem se fala.”

Maite Schneider, co-fundadora da Transempregos

 

“Atualmente, vejo que a publicidade, em relação à representação de pessoas trans, atingiu um lugar que outros mercados e áreas da sociedade ainda não chegaram. Não se vê mais campanhas fazendo piada de travestis. Quando são feitas comunicações com essa temática, existe a preocupação de ouvir a comunidade, de trazer profissionais trans para a construção dos filmes, e isso precisa ser reconhecido. Porém, a inclusão acontece de maneira muito superficial, sem que de fato as pessoas trans possam ingressar de modo efetivo no mercado e, por isso, acredito que um dos maiores desafios do mercado publicitário seja a inclusão dessa parcela da sociedade de maneira digna, efetiva e comprometida.”

Yris Franco, producer junior na GUT São Paulo 

 

O que precisa mudar?

“A ideia de que a diversidade é periférica, um enfeite ou uma moda. Ou mesmo que as empresas precisam ficar eternamente “se preparando” para contratar pessoas trans. Veja bem, eu já nasci, não tenho tempo de esperar agência nenhuma “arrumar a casa”. Essa ideia de “não estamos preparados” ou “ainda estamos engatinhando” precisa acabar. Nós precisamos aprender mais rápido. A verdade é que está melhorando, mas precisa melhorar com mais agilidade. Só tenho uma vida, não posso esperar esse mercado se preparar para lidar comigo, não é possível que seja tão difícil assim. Nós queremos além de comer, morar, envelhecer com dentes. Queremos ter aquele sentimento que a gente pertence a algum lugar. É aí que a propaganda mais pode ajudar. Acredito que a publicidade brasileira vai ajudar o Brasil a gostar de trans.

Eu trabalho todos os dias para que em 2029 existam 2% de trans gerente acima nas agências. O mercado merece, o Brasil merece, e nós também.”

Ariel Nobre

 

“O que não deveria ser feito e já diminuiu bastante é ter pessoas LGBTQIAP+ interpretadas por quem não é da comunidade, e isso era muito comum no cinema há alguns anos atrás. Frequentemente atores homens interpretavam mulheres trans. Só que nossa vida não é uma interpretação. Somos quem somos. Temos dificuldade de ingressar no mercado de maneira geral. Na arte, na moda e na publicidade não é diferente. E quando você tem uma interpretação, vira algo muito caricato. Sempre achei constrangedor quando via interpretações, porque não fazem uma comunicação legal com a própria comunidade e, de maneira ampla, acabam educando errado as pessoas, mostrando não uma pessoa trans, mas uma interpretação de um ator sobre o que é ser transgênero. De uns anos para cá isso felizmente cessou, porém, é importante sempre termos isso em mente.

Danielle Torres é sócia da KPMG (Crédito: Divulgação)

O que deveria ser feito é uma maior inclusão. Limitamos muito o público LGBTQIAP+ ao mês do Orgulho, eventualmente falando um pouco no mês da visibilidade trans, e também restringimos quase que à celebração, quando essa data também representa uma luta. Adoro ver as cores da bandeira nas lojas, me sinto incluída, mas me pergunto por que não poderia ser o ano todo. Porque, como consumidora, não me sinto importante nos outros 11 meses do ano. Então acho que deveria existir mais naturalidade nessa inclusão. Quando há inclusão, o que já é raro, há algum tipo de reação e a coisa parece não engrenar.

As empresas têm um público, um consumidor, conhecem seu cliente. Então, por que esse cliente por vezes não vê uma inclusão de pessoas diversas com bons olhos? Será que precisamos dialogar mais? Não sei se falta diálogo ou se devemos simplesmente ter mais inclusão para tratar do ponto com naturalidade. Da minha parte, o que prefiro fazer é conversar e mostrar que existem realidades que não conhecemos, e não há problema em não conhecê-las. É mais no sentido de ‘vamos juntos? Vamos conhecer e se abrir para o outro? Todo mundo só tem a ganhar com isso’.”

Danielle Torres  

 

“Houve um aumento na representação de pessoas trans e travestis em campanhas de publicidades. E, com mais visibilidade, elas ainda acabam muito atreladas à questão de serem trans. Mas as narrativas começaram a mudar um pouco. Algumas marcas têm adotado histórias mais positivas, destacando mais as conquistas, falando sobre resiliência, mostrando de maneira ainda tímida um aumento de diversidade de experiências de pessoas trans e travestis.

Mas ainda há estereótipos e clichês que são mantidos, e isso precisa mudar. Há poucas representações, simplificando demais e marginalizando as identidades trans, que são múltiplas. Há muitos condicionamentos de biotipos e caracterizações, criando caricaturas que muitas vezes não são verdadeiras e não correspondem à maioria delas.

Pessoas trans representam geralmente a prostituta, a exagerada, aquela com o decotão, a mais exibida. Não há outras referências, não colocam pessoas trans em outros papeis. E pessoas trans não sabem representar apenas sua identidade, sua transexualidade. Elas podem exercer qualquer papel na publicidade. Ser mãe, filhas, esposas, pais, maridos. Podemos tudo e, por isso, podemos estar em várias ações. Podemos ser CEOs de empresas, construir outros caminhos. Estamos em várias áreas. Então trazer essas pessoas para além da questão trans, ocupando outros papeis que elas já ocupam na vida real, é hiperimportante.

Por isso, é preciso aumentar muito a educação e a sensibilização do mercado, porque muitas vezes os anúncios acabam perpetuando o desconhecimento e a falta de sensibilidade em relação às experiências de pessoas trans e travestis. Por isso, é necessário que as equipes de marketing e publicidade recebam treinamentos, façam pesquisas de campo e tenham pessoas trans envolvidas lá dentro. Ainda há muita exploração, então algumas marcas se concentram muito em pontos de venda sem compromisso genuíno com as pessoas trans e com a inclusão.

Deve haver uma participação das marcas para além da publicidade. Elas precisam se envolver ativamente em causas que afetam a comunidade. Devem apoiar a organização, estar no dia a dia. Você só muda aquilo que você conhece, e infelizmente só existe aquilo que está em foco. Se algo não é falado, não existe. Se não tem política pública, não existe. E esse apagamento é um jeito de invisibilizar grupos. Acho que a publicidade tem esse papel importante, e infelizmente, tão pouco usado. A não ser para vender produtos e marcas, acho que ela pode e deve ir além. E espero que vá (além), porque ela vai fazer uma revolução, vai ajudar muito na construção deste mundo melhor de que precisamos.”

Maite Schneider

 

Sinto um movimento dentro da publicidade que só se pensa em campanhas, contratações e de alguma forma dá visibilidade aos corpos de gêneros dissidentes apenas em certos períodos do ano. Essas pessoas não deveriam ser consideradas apenas em datas de conscientização, isso também é uma forma de marginalização. Considerar nossos corpos como passíveis de serem humanizados apenas em datas específicas é tão transfóbico quanto não nos considerar de nenhuma forma. Nós existimos o ano inteiro, nós comemos e pagamos conta o ano inteiro. Nosso trabalho é tão digno e excelente quanto de qualquer outra pessoa que se debruça sobre os feitos na publicidade e no audiovisual.

Yris Franco é producer junior na agência GUT São Paulo (Crédito: Divulgação)

Para mim se faz mais do que necessário o olhar atento aos profissionais trans do nosso mercado. Estamos nas agências, nas produtoras de imagem e áudio, freelando nos sets, em eventos, agências digitais. Muitas vezes precisamos realizar diversas tarefas correlacionadas para que possamos ter mais possibilidades de trabalho. Então, ao meu ver, não faltam pessoas trans qualificadas. Nós precisamos que de fato nos vejam, que busquem para além da bolha de cada um e dos rostos familiares de agências concorrentes.”

Yris Franco

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