Opinião

Julho das Pretas e o cansaço de ser símbolo o tempo todo 

Ainda precisamos de políticas de inclusão, mas também precisamos que as mulheres negras possam apenas existir

Helen Pedroso

Diretora de Responsabilidade Corporativa e Direitos Humanos do Grupo L’Oréal no Brasil 25 de julho de 2025 - 1h32

(Crédito: Shutterstock)

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Julho é um mês de luta, de memória e de celebração das mulheres negras latino-americanas e caribenhas. É também um lembrete de tudo o que conquistamos até aqui e, ao mesmo tempo, da longa caminhada que ainda temos pela frente. Mas, nesse Julho das Pretas, quero falar de algo que nem sempre aparece nos discursos ou nos painéis de representatividade: a exaustão. 

Exaustão de ter que ser exemplo. De carregar não apenas o próprio nome, mas também o símbolo que representamos para tantas outras. De falar sobre raça e gênero como uma missão adicional à nossa entrega profissional. De viver constantemente entre o reconhecimento e a solidão. 

Ser uma mulher negra em posição de liderança é ocupar um espaço onde historicamente fomos silenciadas ou apagadas. Uma pesquisa do Instituto Ethos que avaliou o Perfil Social, Racial e de Gênero das 1.100 Maiores Empresas do Brasil entre 2023-2024 constatou que nas posições mais altas da hierarquia, como os cargos executivos, apenas 3,4% são ocupados por mulheres negras.

Nos conselhos de administração, que são responsáveis pelas decisões estratégicas das empresas, essa porcentagem cai para 1,8% de mulheres negras, enquanto 77% são homens brancos. 

É uma tremenda responsabilidade ocupar esses espaços, mas, para nós, essa responsabilidade pesa ainda mais. Porque não basta sermos boas, temos que ser excelentes. Não basta liderar, temos que justificar o porquê estamos ali. A todo momento, há uma expectativa (explícita ou silenciosa) de que nossa voz, nossa postura e nosso sucesso sirvam de espelho e alicerce para outras. É bonito. É necessário. Mas é exaustivo. 

É nesse contexto que pensar ações estruturantes faz diferença. Para mudar essa realidade, não bastam políticas concretas de inclusão, precisamos também de iniciativas voltadas para permanência e desenvolvimento. Mais do que abrir portas, é preciso garantir que essas mulheres se sintam verdadeiramente acolhidas dentro delas. 

Foi justamente por acreditar nisso que escolhi trabalhar em uma empresa como o Grupo L’Oréal no Brasil. Aqui, tenho orgulho de liderar uma área comprometida com essa transformação. Todos os dias, atuo na construção de bases sólidas. Estratégia, equipe, recursos e, principalmente, escuta.

Meu objetivo é tornar essa mudança perene, criando estruturas que tornem o caminho menos solitário para quem vier depois. Porque mais do que avanços pontuais, o que buscamos é continuidade, sustentada por alianças reais e ambientes preparados para que essa diversidade floresça. Hoje somos 27% de liderança negra dentro do Grupo no país, de acordo com o nosso Censo interno, mas o objetivo é que isso se expanda e tenho me esforçado muito para fazer disso uma realidade.  

Cansaço de lutar o tempo todo

Esses dias, vi novamente um vídeo da Michelle Obama. Ela dizia: “Cansei. Cansei de me preocupar se eu pertenço a este lugar. Isso é uma farsa. Que você não pertence. Que eles são mais inteligentes. Que trabalham mais. Que sabem mais. Que merecem estar aqui mais do que você”.

Essa fala me atravessou de novo como um soco no estômago e um abraço ao mesmo tempo. Porque sim, muitas vezes, nos fazem acreditar que estamos num lugar que não é nosso. E passamos a vida tentando provar o contrário. 

Só que chega um momento em que a gente se cansa. Não de lutar, mas de ter que lutar o tempo todo. Nos ensinaram a resistir, a sobreviver, a ocupar espaços. Mas nem sempre nos ensinaram que também temos direito ao descanso, ao silêncio, à dúvida, ao “não sei”. À humanidade. 

Falar sobre esse cansaço também é reconhecer o direito ao descanso como parte da luta. A escritora e ativista Tricia Hersey, fundadora do movimento Ministério do Cochilo, afirma em seu livro “Descansar É Resistir – Um Manifesto” que o repouso é um ato político e uma forma de desobediência civil frente à lógica de exploração que marca a experiência das pessoas negras.

Outras autoras como Lélia Gonzalez e Maya Angelou também apontam a exaustão como herança estrutural do racismo, e nos lembram que resistir, às vezes, é também recuar, preservar e respirar. 

Nossas jornadas profissionais, por vezes, se confundem com uma missão de vida. Eu mesma encontrei meu propósito cedo. E sei que isso é um privilégio enorme, fruto do acesso, de redes de apoio, de oportunidades que muitas ainda não têm. Mas até esse privilégio cobra um preço. Porque, quanto mais cedo a gente entende que tem uma missão coletiva, menos espaço temos para apenas ser. Menos direito temos ao erro, ao recomeço, ao passo atrás. 

Nas mentorias que ofereço a outras mulheres negras, vejo com frequência o quanto ainda é raro poder escolher com liberdade. O quanto os caminhos profissionais muitas vezes são estreitos, orientados mais pela sobrevivência do que pela vocação. O quanto ainda é comum ouvir “você precisa abrir essa porta para as próximas”, mesmo quando tudo que aquela mulher queria era descansar da maratona de estar sempre abrindo portas. 

É por isso que neste Julho das Pretas eu quero propor uma pausa. Um silêncio. Um espaço para que a gente se escute. Que a gente possa se reconhecer não só na força, mas também no cansaço. Porque a luta não termina, mas precisa ser sustentável. Porque não queremos mais que mulheres negras precisem adoecer para serem ouvidas. Nem que desistam para serem lembradas. 

Sim, ainda precisamos falar sobre racismo. Ainda precisamos estar nos espaços de decisão. Ainda precisamos de aliados reais e de políticas consistentes de inclusão. Mas também precisamos de um mundo onde mulheres negras possam simplesmente existir. Onde o pertencimento não seja uma batalha diária. Onde a potência não precise ser provada, só vivida.