Luz, câmera e inclusão
É transformador ver atrizes e atores com deficiência interpretando papéis que vão além da deficiência

Haonê, que interpreta a personagem Pam em Dona de Mim, da TV Globo (Crédito: Divulgação)
Durante anos, eu assisti às novelas com o coração apertado. Não porque não gostasse das histórias, mas porque me sentia, no fundo, completamente ausente delas. Não havia ali nenhuma personagem que me representasse de verdade. Quando, raramente, surgia uma pessoa com deficiência na trama, ela era quase sempre interpretada por um ator sem deficiência, em um enredo de piedade, de castigo ou de superação forçada.
Hoje, apesar de ainda estarmos longe do ideal, começo a ver pequenas revoluções acontecerem. São silenciosas, porém profundas. É transformador ver nas telas da TV, do cinema e das plataformas de streaming atrizes e atores com deficiência interpretando papéis que vão além da deficiência. É uma experiência que me emociona em camadas difíceis de descrever.
Não se trata apenas de “ver alguém parecido comigo na tela”. Trata-se de me conectar com as histórias. Trata-se de uma menina com deficiência em algum canto do Brasil que, ao ligar a televisão, finalmente consegue se imaginar atriz. Esse é o caso que está acontecendo com a Haonê que interpreta a Pam em Dona de Mim, da TV Globo. Ela tem postado muitas mensagens que recebe de mães de garotas amputadas e de garotas amputadas declarando essa sensação. Não vale a pena a gente citar? E não porque a história gira em torno de sua condição, mas porque ela é o que é: uma artista com talento e com potência.
A força dessa representatividade não está só no que ela mostra, mas no que ela corrige: por décadas, fomos pessoas retratadas como heroínas por simplesmente existir ou como vítimas eternas esperando a salvação. Essa lógica desgasta, oprime e rotula. E mais do que isso: impede a audiência de nos conhecer de verdade.
Quando uma novela ou série permite que uma pessoa com deficiência atue como qualquer outra vivendo alegrias, fracassos, paixões e dilemas, ela está dizendo que somos parte da sociedade. Que existimos fora da dor, fora do rótulo, fora do viés, fora das “caixinhas”.
Essa virada de chave nas narrativas, ainda tímida, mas cada vez mais perceptível, tem um impacto que vai além da indústria do entretenimento. Ela é didática e convida a sociedade ao letramento sobre inclusão.
Infelizmente, não há dados precisos sobre o número de atores com deficiência no país. Há uma iniciativa bem séria do movimento Acessa Mais, em parceria com o Ministério da Cultura, com o objetivo de mapear artistas e agentes culturais com deficiência. A falta de dados não surpreende, já que informações da população com deficiência ainda é um tema negligenciado.
De acordo com o Censo 2022, o Brasil tem uma população estimada de pessoas com deficiência de 14,4 milhões, o que representa 7,3% dos brasileiros. Índice bem abaixo da média mundial. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 15% da população global, ou seja, mais de 1 bilhão de pessoas, vive com alguma deficiência. Não parece coerente que o Brasil ter apenas metade da estimativa mundial.
Portanto, se não há uma certeza sobre o total de pessoas com deficiência no país, imaginem sobre o total de um segmento específico, como a dramaturgia. Mas, ainda assim, podemos celebrar algumas pessoas com deficiência que já estão brilhando nas telas brasileiras:
Tabata Contri – atriz e consultora de diversidade e inclusão. Atuou em vários papéis, em novelas e propagandas. O mais recente foi na novela Travessia, da TV Globo, interpretando a advogada Juliana (2022).
Haonê Thinar – atriz, bailarina e modelo que está atuando como a Pam, na novela Dona de Mim (TV Globo). Haonê é amputada da perna direita.
Manuela Trigo – atriz mirim que tem paralisia cerebral, participa da série do Globoplay Aruanas. Ela interpreta Gabi, neta do personagem de Luiz Carlos Vasconcellos.
Luciano Mallmann – ator paraplégico que coleciona inúmeras campanhas publicitárias e, recentemente, interpretou o Carlinhos de Elas por elas, novela na TV Globo. Também está na série Justiça 2, do Globoplay, como Carlinhos.
Pedro Neschling – intérprete do personagem Eriberto na novela Renascer, foi diagnosticado com deficiência auditiva aos 18 anos de idade. Também é escritor, roteirista e diretor de teatro e cinema. É filho da atriz Lucélia Santos e do maestro John Neschling.
Pedro Fernandes – 33 anos de idade. Tem paralisia cerebral com cognitivo preservado, ele brilha no personagem Peter da atual novela das sete da TV Globo, Dona de Mim.
Giovanni Venturini – ator com nanismo, atua na segunda temporada da série Justiça, do Globoplay. Ele interpretou Elias e a trama não envolve sua condição.
Camila Alves, intérprete de Gabriela em Todas as Flores, novela do Globoplay, tem deficiência visual. Também trabalhou como consultora na novela, ajudando a retratar o universo das pessoas com deficiência.
É uma pequena mostra entre tantos outras estrelas com deficiência que estão ocupando espaços na literatura, na música, nas artes plásticas etc. Estão ali porque têm talento e isso deveria ser o suficiente.
A melhor estratégia é seguir ampliando espaços. Também é preciso cobrar produções mais diversas, formar olhares mais inclusivos, desde a base. Garantir que nossa presença não seja apenas lembrada em datas específicas ou em personagens pontuais, mas que sejamos consideradas como parte viva da cultura, da arte, da sociedade.
Para realizar os seus sonhos de profissão, as pessoas com deficiência também atuam para aumentar a representatividade, naturalizam a nossa vivência artística buscando espaço nos palcos, nas telas e onde mais for possível expor não somente a deficiência de uma pessoa, mas a prática do ofício de artista no melhor formato da “arte imitando a vida”. E esse movimento não pode mais parar.