Mulheres nas deep techs: a resistência de inovar no Brasil
Empreendedoras de tecnologias avançadas contam suas histórias e os desafios que enfrentam por serem mulheres e lideranças na ciência
Mulheres nas deep techs: a resistência de inovar no Brasil
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Lidia Capitani
14 de maio de 2025 - 13h23
(Crédito: Shutterstock)
Empreender em ciência no Brasil é um ato de resistência. Para quem decide fundar uma deep tech, startup baseada em inovações científicas e tecnológicas profundas, os caminhos são tortuosos, cheios de barreiras burocráticas, altos custos e, muitas vezes, incompreensão do mercado. Ainda mais quando quem lidera o processo é uma mulher. De acordo com o relatório Deep Techs Brasil 2024, da Emerge, “deep techs são tecnologias baseadas em avanços científicos que têm ou superam riscos de desenvolvimento e têm grande potencial de liderar mudanças, estabelecer novas indústrias e reinventar as atuais”.
Do total, 50% dessas empresas são focadas em biotecnologia e atuam na área de saúde ou agronegócio. 67% delas estão no sudeste brasileiro, muito devido aos investimentos fornecidos por entidades públicas como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), ainda segundo o relatório da Emerge. Entretanto, ainda não existem dados sobre a quantidade de mulheres à frente de deep techs no Brasil.
Na área de biotecnologia, por exemplo, a dificuldade começa antes mesmo de o trabalho acontecer. “Temos recursos humanos maravilhosos, mas enfrentamos uma grande desvantagem competitiva: a burocracia e os impostos para importação de insumos de pesquisa”, desabafa Lygia Pereira, cofundadora e CEO do Gen-t, uma plataforma de mapeamento do genoma da população brasileira.
Como muitas pessoas que se aventuram no mundo das deeptechs, Lygia fomentou seu espírito empreendedor ainda no mundo acadêmico, enquanto pesquisadora. “Durante a graduação, fiz iniciação científica em genética, trabalhando com a drosófila, a mosquinha da banana. Aquilo foi suficiente para eu ter certeza de que era isso que queria. Adorei a vida de laboratório”, conta a CEO.
Carioca de origem, Lygia mudou-se para São Paulo em 1996, quando se tornou professora da Universidade de São Paulo (USP). “Ano que vem completo 30 anos de carreira docente. Sou professora titular de genética e dirijo o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias”, conta. A doutora liderou grandes projetos de células-tronco, mas logo seu interesse se voltou para o uso destas células para testar novos medicamentos, o que exige um mapeamento da diversidade genética da população brasileira.
Em outros países, já existiam projetos de sequenciamento genético da população, mas, no Brasil, o projeto não avançava pelo alto custo e complexidade. De acordo com a pesquisadora, a partir de 2016, começaram a surgir estudos que mostravam a falta de diversidade nos bancos de dados genômicos, e isso logo despertou seu interesse.
“Percebi que era o momento ideal para colocar de pé o projeto Genomas Brasil. Nossa população tem uma mistura única de indígenas, africanos e europeus. São 500 anos de miscigenação”, continua a CEO. Assim, com mais dois colegas da USP, eles criaram o projeto com a proposta de desenvolver uma plataforma de dados genômicos e de saúde da população brasileira. Posteriormente, o plano foi abraçado pelo Ministério da Saúde e, juntamente com outros grupos de pesquisadores que sequenciaram os genomas de brasileiros, tornou-se o Programa Nacional Genomas Brasil.
Lygia Pereira, cofundadora e CEO da gen-t (Crédito: Arquivo pessoal)
“Mas, nesse processo, percebi que essas plataformas de dados genômicos e de saúde têm um valor enorme para o desenvolvimento de novos fármacos”, conta Lygia. Assim, ela criou o Gen-t, com o intuito de ser uma plataforma de pesquisa em saúde baseada na diversidade genética do Brasil, com potencial para novas descobertas e inovações para o mercado e a academia.
Para Lygia Pereira, um dos desafios de empreender foi fazer a transição da academia para o mercado. “Todo projeto de pesquisa que fazemos é um empreendimento: eu escrevo o projeto e tenho que convencer alguém a me apoiar. Só que esse alguém não quer saber se o projeto vai dar lucro, apenas se vai gerar novo conhecimento. É uma medida completamente diferente”, conta.
Luana Raposo, diretora executiva da ImunoTera, também descobriu a paixão pelo laboratório ainda na graduação. Enquanto estudava farmácia industrial na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, no Rio de Janeiro, ela realizou um estágio no Instituto Vital Brazil, no departamento de pesquisa e desenvolvimento (P&D) de soros e vacinas. “À época, não tive a dimensão do impacto que esse estágio causaria na minha carreira, mas hoje enxergo que foi o início de uma trilha acadêmica em imunobiológicos”, relata.
Em meio às suas pesquisas, Luana descobriu o potencial das vacinas genéticas e como elas poderiam facilitar a validação imunológica de novos candidatos vacinais. Mas a oportunidade de negócio surgiu mesmo do inconformismo de ver produtos promissores virando apenas artigos científicos e patentes penduradas na parede. Assim, o ImunoTera nasceu da iniciativa de três pesquisadoras, Bruna Porchia, Mariana Diniz e Luana Raposo, que criaram uma plataforma de vacinas terapêuticas. “No pipeline, há imunoterapias contra os vírus da zika, da dengue e da Covid-19, mas nosso carro-chefe é a vacina terapêutica contra o câncer causado por HPV, principal vírus do câncer do colo uterino”, explica Raposo.
Outro obstáculo comum das deep techs é o desconhecimento dos fundos de venture capital (capital de risco) nacionais sobre o funcionamento das tecnologias profundas, questão que ainda se agrava para as mulheres empreendedoras. “Eles estão muito acostumados com fintechs, negócios que dão retorno rápido”, avalia Lygia Pereira. “Teve gente que, com um ano de empresa, já perguntava sobre receita, o que é uma maluquice na nossa área”, afirma a professora.
O ImunoTera, por exemplo, conta com apoio financeiro da Fapesp, por meio do Programa Pipe (Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas). “Entretanto, há uma dificuldade significativa na captação de recursos de venture capital (VC). Um relatório da PitchBook observou que as empresas fundadas por mulheres receberam uma fatia bem pequena do bolo de capital de risco: apenas 20% do financiamento”, comenta Luana.
Luana Raposo, fundadora e diretora executiva da ImunoTera (Crédito: Divulgação)
Apesar disso, um movimento de conscientização começa a surgir. Instituições como a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) estão estruturando fundos específicos para o setor. “O ecossistema está percebendo que precisa melhorar, e a gente vai ter que começar a criar essa cultura aqui”, reflete Lygia Pereira, CEO do Gen-t.
Se por um lado o Brasil esbarra em entraves estruturais, por outro, tem uma riqueza de talentos ainda pouco explorada. Mesmo assim, há ainda certa descrença na capacidade dessas empreendedoras de criarem inovações na fronteira do conhecimento. Duda Franklin e Kalynda Gomes, cofundadoras da Orby, passaram por essa situação. “Poucos sabem que Natal, no Rio Grande do Norte, onde crescemos, é um polo nacional de pesquisas em neurociências, graças à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)”, destaca Duda. “Desde a captação de recursos até a construção de credibilidade, muitas vezes precisávamos provar duas vezes o nosso valor”, desabafa a fundadora.
A Orby está redefinindo o tratamento da dor e das limitações motoras com uma tecnologia que integra software, hardware e inteligência artificial, por meio da neuromodulação, uma técnica que usa estimulação elétrica para interagir com o sistema nervoso. “Desenvolvemos um sistema pioneiro de neuromodulação não invasiva. Fruto de quase uma década de pesquisas, a Orby é a única que oferece uma solução capaz de aliviar a dor e reabilitar o movimento, por meio de uma abordagem mais precisa, escalável e inteligente. Tudo isso sem a necessidade de cirurgia ou implantes”, explica a empreendedora.
A ideia da empresa surgiu dentro de um hackathon no Rio de Janeiro, em 2021, em que Kalynda e Duda se juntaram a Aldrén Martins, engenheiro biomédico e atual CPO da Orby, e formaram uma equipe que saiu vitoriosa do desafio. Agora, seus sonhos são expandir globalmente. “Queremos mostrar que, sim, mulheres podem e devem liderar as maiores revoluções do nosso tempo”, defende Duda.
Duda Franklin e Kalynda Gomes, cofundadoras da Orby (Crédito: Elaine Kuntz)
A afirmação questiona uma realidade ainda muito frequente nas deep techs: a baixa representatividade feminina. Na Europa, por exemplo, elas representam menos de 25% dos fundadores de deep techs, segundo o Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (EIT) . “Isso é só reflexo do número menor de mulheres nas áreas exatas”, reflete Lygia Pereira.
Para Duda Gomes, o problema não é apenas a falta de presença, mas de reconhecimento. “É fundamental ver mais mulheres liderando projetos científicos, empresas e soluções disruptivas. Precisamos ocupar esses espaços não apenas como força criadora de novas possibilidades, mas também como símbolo.”
Apesar disso, há sinais de mudança. “As mulheres estão ganhando cada vez mais espaço, confiança e voz nesse ecossistema. A presença feminina na inovação está amadurecendo e crescendo, e acredito que essa diversidade é essencial para construirmos soluções mais justas e eficazes”, aponta Mona Oliveira, fundadora e CEO da BioLinker, startup que trabalha com a produção de biologia sintética, desenvolvendo proteínas recombinantes sob demanda, que podem atender desde pesquisas até aplicações industriais.
A trajetória de Mona é semelhante às das demais empreendedoras. Ela é formada em medicina veterinária, com mestrado em biotecnologia e doutorado em nanotecnologia e bioquímica. A BioLinker nasceu da sua tese de doutorado e do esforço coletivo de seus cofundadores, Sandi Ravbar e Phelipe Vitalle. Agora, seu objetivo é expandir o negócio e consolidar sua liderança no mercado brasileiro e internacional de biotecnologia.
A mudança para aumentar a representatividade feminina nas deep techs, para essas lideranças, começa na base. “É uma questão cultural. Precisamos fazer com que cada vez mais meninas se reconheçam nesse lugar e consigam se livrar desses estereótipos”, defende Lygia. “Quando você fala para uma menina sobre um cientista, ela tem que conseguir imaginar que pode ser uma mulher. Isso só vai mudar quando a gente tiver mais mulheres ocupando e aparecendo nesses espaços”, continua.
Dados recentes indicam que essa transformação já está em curso. Segundo o Sebrae, mulheres lideram 31% das startups brasileiras. Um salto significativo frente aos 8,65% registrados em 2023. Parte desse avanço vem do fortalecimento de redes de apoio e programas de mentoria. “Após vencer o Prêmio Mulheres Inovadoras da Finep, fui convidada para ser mentora no programa”, conta Luana. “É uma satisfação enorme ver pesquisas de ponta sendo desenvolvidas por mulheres cientistas, que na maioria dos casos, ainda dividem seu tempo cuidando da família e dos filhos”, afirma.
Além disso, uma fortaleza dessas empreendedoras é justamente sua bagagem acadêmica. “A tríade ciência, propósito e conexões foi essencial para a nossa jornada empreendedora. A base técnica nos deu discernimento e visão estratégica. O propósito nos deu fôlego para continuar, mesmo nos momentos mais difíceis. E as conexões foram fundamentais para transformar uma pesquisa promissora em um produto robusto”, reflete Duda Franklin.
Para aquelas que não têm uma rede de apoio, como o caso de Mona Oliveira, a persistência, a resiliência e a coragem são os principais impulsionadores. “Não vim de uma família com recursos, não tinha padrinhos ou conexões no ecossistema de inovação. Tive que construir tudo do zero. Nunca desisti, mesmo diante de incertezas, recusas ou obstáculos. Ter um propósito claro e uma equipe comprometida foi fundamental”, diz a CEO da BioLinker.
Mona Oliveira, cofundadora e CEO da BioLinker (Crédito: Divulgação)
Ter investidores comprometidos com a missão e propósito do negócio é outro grande diferencial para a jornada das deep techs. “Temos nomes como Eduardo Mufarej (investidor e empreendedor), Armínio Fraga (economista e ex-presidente do Banco Central) e o presidente da Eurofarma, Maurizio Billi. São investidores que, claro, querem o sucesso da empresa, querem o lucro, mas desejam isso como consequência de um crescimento que traga impacto para a sociedade”, destaca Lygia Pereira.
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