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O papel da educação em tecnologia na vida das mulheres negras

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O papel da educação em tecnologia na vida das mulheres negras

Iniciativas mudam o perfil dos profissionais de tecnologia e transformam a vida das mulheres negras no Brasil


6 de maio de 2024 - 17h14

“Quando você pensa em um profissional de tecnologia, que imagem vem à sua mente?”, questiona Carmela Borst, CEO e fundadora da SoulCode Academy, edtech que promove educação tecnológica. Se sua resposta foi um homem, jovem adulto e branco, sua visão não está muito longe da realidade. Homens brancos correspondiam à maior proporção (31%) de profissionais da área de tecnologias da informação e comunicação (TIC) no Brasil em 2023, de acordo com relatório da Brasscom (Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação). Em comparação, no mesmo ano, as mulheres negras representavam 11,5% dos profissionais. 

O avanço galopante das novas tecnologias exige que cada vez mais profissionais estejam familiarizados com os aspectos técnicos da área. Nos últimos três anos, o setor das TIC cresceu numa média de 11,9% ao ano, com um crescimento de 8,5% somente em 2023. Ele representa 6,5% do PIB, 4% dos empregos nacionais e tem uma média salarial duas vezes maior que a nacional. Apesar de ter tamanha importância e crescimento acelerado, a diversidade ainda é um grande desafio para a área. 

Além da falta de diversidade no setor, também enfrentamos barreiras muito grandes em relação à inclusão digital no país. Apenas 29% da população brasileira tem acesso de qualidade à internet, sobretudo a população branca das classes A e B. Enquanto os cidadãos desconectados (20%) e subconectados (35%) são predominantemente negros das classes C, D e E. Além disso, 58% dos brasileiros acessam a internet apenas via smartphone, de acordo com a PWC. 

“O cenário majoritariamente masculino na tecnologia é resultado de processos históricos racistas, coloniais e patriarcais. A falta de acesso à educação de qualidade e outras desigualdades sociais aprofundam a disparidade ao criar barreiras ainda maiores para as mulheres negras. A baixa participação delas nesse mercado implica em perdas não só para o desenvolvimento de estruturas sociais mais justas e igualitárias, mas também para o êxito das próprias organizações”, aponta o relatório de impacto da PretaLab, iniciativa que promove formação em tecnologia para mulheres negras. 

Com este contexto em vista, projetos como a PretaLab e a SoulCode buscam hackear a indústria da tecnologia a fim de criar oportunidades para que mais mulheres, pessoas negras e outros grupos minoritários possam entrar neste mercado de trabalho. “A importância está em não deixar ninguém para trás em um mundo cada vez mais digital e tecnológico. Programas como a PretaLab oferecem perspectivas diversas na construção do futuro, garantindo que todos tenham voz nesse processo evolutivo”, afirma Silvana Bahia, co-diretora executiva do Olabi, organização social que promove a PretaLab. 

Tecnologia para todas

Das mulheres negras que buscam uma formação pela PretaLab, 44% têm entre 31 e 40 anos e buscam uma recolocação no mercado de trabalho. A maioria está num momento de transição de carreira, mas há ainda aquelas que são empreendedoras ou até mesmo artistas com interesse em arte digital.

“O primeiro motivo delas buscarem esta formação é o reposicionamento no mercado de trabalho. O segundo motivo, que talvez seja menos comum, é o interesse de longa data por tecnologia, uma área historicamente dominada por homens brancos”, destaca Silvana. “Agora, elas veem uma oportunidade de aprender em um ambiente composto por mulheres negras, o que torna o aprendizado mais acessível e encorajador”, continua. 

Silvana Bahia, co-diretora executiva do Olabi, organização social que promove a PretaLab: “Agora, elas [mulheres negras em busca de formação em tecnologia na plataforma] veem uma oportunidade de aprender em um ambiente composto por mulheres negras, o que torna o aprendizado mais acessível e encorajador” (Crédito: Divulgação)

Jaqueline foi uma das alunas que passou pela PretaLab em busca de recolocação profissional. Ela iniciou na área no ensino técnico, mas na hora de escolher um curso superior, optou por educação física, pois não tinha condições financeiras para bancar o curso de ciências da computação. Com o nascimento de seu filho, ela precisou se adaptar e começou a vender roupas fitness na internet. Entretanto, após oito anos gerenciando a loja virtual, a chegada da pandemia provocou dificuldades no negócio. Nesse momento, com o filho crescido e apoio do marido, Jaque voltou a estudar tecnologia.

“Por meio da Preta Lab, participei de um curso de computação em nuvem e me apaixonei pela área. Além disso, me envolvi com a comunidade de mulheres na tecnologia, o que foi crucial para me sentir acolhida e apoiada, algo que faltava quando comecei há 20 anos”, conta Jaqueline. “Agora, com 41, estou fazendo estágio em uma multinacional e cursando análise de desenvolvimento de sistemas na universidade.” 

Outro exemplo é da Patrícia, ex-aluna da SoulCode que também teve uma trajetória semelhante. Ela gostava de tecnologia e até iniciou uma faculdade de desenvolvimento de sistemas, mas achou o ensino muito teórico e precisou interromper por conta da maternidade e do casamento. “Foi então que descobri a SoulCode e sua formação em engenharia de dados, baseada em Python. Foi amor à primeira vista. Inscrevi-me, fui aceita e antes mesmo de concluir o curso, recebi uma oferta de emprego da própria SoulCode”, relata. Após alguns meses, ela recebeu uma oportunidade em outra empresa como analista de BI e engenheira de dados, onde atua hoje. 

Sua jornada de aprendizado, entretanto, não foi sem desafios. “Meu notebook era tão antigo que, se abrisse o Excel, ele superaquecia e desligava. Decidi não usar isso como desculpa e assistia às aulas pelo celular, anotando tudo em um caderno. Quando o computador funcionava, eu digitava os códigos rapidamente para testar”, lembra Patrícia. 

Medos e inseguranças

Os relatos de Patrícia e Jaqueline retratam como muitas mulheres negras se sentem: que a tecnologia não é para elas. “Achava que não conseguiria aprender, tinha um bloqueio. Pensava que tudo o que envolvia tecnologia era muito voltado para homens, principalmente os jovens, o que não é o meu caso”, diz Patrícia. 

Jaqueline, ex-aluna da PretaLab: “Agora, com 41, estou fazendo estágio em uma multinacional e cursando análise de desenvolvimento de sistemas na universidade” (Crédito: Divulgação)

Antes de iniciar o curso, Jaque estava num momento difícil. Ela havia entrado em depressão, devido a problemas com a loja e o acúmulo de dívidas. “Tinha medo de não ser capaz, de não conseguir fazer tudo o que precisava, pois sempre achei que tinha de ser a Mulher Maravilha”, lembra. “Esse medo de fracassar me acompanhava, até que, com as aulas de soft skills e técnicas da PretaLab, percebi que não precisava ser perfeita.” 

Ambas as formações, da SoulCode e da PretaLab, oferecem módulos de soft skills que abordam questões como inteligência emocional, gestão e plano de carreira, liderança, autoestima e comunicação. O que é muito importante, visto que muitas alunas chegam aos cursos com muitas inseguranças. “Elas questionam se conseguirão entender a tecnologia e temem que seja muito difícil. À medida que avançam, percebem a importância de aprender em um ambiente acolhedor e representativo, o que ajuda a diminuir a vergonha de fazer perguntas e a incerteza sobre sua capacidade”, avalia Silvana. 

Das plataformas digitais às reais

Após ter a oportunidade de fazer uma imersão no Vale do Silício, nos Estados Unidos, Danielle Marques decidiu promover a mesma experiência para mais empreendedores negros brasileiros. “O futuro é a tecnologia. Se não participarmos da construção, sofreremos apenas os impactos. E não dá para pensar no futuro excluindo metade da população”, reforça. No ano passado, a iniciativa Do Silêncio ao Silício escolheu dez empreendedores com negócios baseados em tecnologia para oferecer bolsas de imersão no vale. 

O critério era ser um empreendedor negro brasileiro com ao menos uma empresa de impacto social. Além disso, a iniciativa priorizou ter 60% de mulheres negras e 40% de regiões fora do eixo sudeste. Este ano, a turma escolhida pôde passar algumas semanas visitando os escritórios do Google, Meta e até Stanford, onde puderam aprender sobre diversos aspectos da tecnologia, desde robótica à inteligência artificial.  

Danielle Marques é fundadora do projeto Do Silêncio ao Silício (Crédito: Acervo pessoal)

Danielle Marques, fundadora do projeto Do Silêncio ao Silício: “O futuro é a tecnologia. Se não participarmos da construção, sofreremos apenas os impactos” (Crédito: Acervo pessoal)

Pâmela Cavalcante foi uma das bolsistas do programa. Ela é CEO da Beeto Soluções Digitais, uma startup de automatização de processos personalizáveis na área de logística. “Vejo que participar do ecossistema do Vale do Silício não se resume apenas a investimentos, mas também à troca de experiências e ao acesso a pessoas e oportunidades que talvez não tivéssemos no Brasil. É um reconhecimento de que podemos ocupar esses espaços e potencializar outras pessoas. E, entre nós mesmos, há muita competência e histórias inspiradoras”, reflete sobre a experiência. 

Outra bolsista contemplada no programa foi Roseane Moreira, CEO e fundadora da Minha Cesta, startup de impacto social que batalha contra a insegurança alimentar por meio de planos de assinatura de cestas básicas. Ela conta como foi participar da imersão: “É uma experiência incrível descobrir que você pode estar no mundo da tecnologia, discutindo novidades e aplicando no seu negócio. Estar atualizada é crucial, já que a tecnologia avança rapidamente e precisamos acompanhar de perto”. 

Efeito multiplicador

Para Patrícia, o impacto da formação foi enorme em sua vida. “Imagina você sem formação e sem uma renda fixa, e de repente você dá uma virada de 180º na situação. Começa a ver dinheiro entrando, se vê empregada, e ainda serve de espelho para as pessoas ao seu redor. Duas das minhas seis irmãs voltaram a estudar ao me verem estudando”, celebra. “No dia da minha formatura, minha filha do meio, Anastácia, perguntou se ela poderia dizer a todos na escola que a mãe dela era engenheira de dados. São coisas pequenas, mas que abrem portas enormes na vida de uma pessoa.”

Promover formação e empregar uma mulher negra não impacta apenas a vida individual delas. O impacto é multiplicado em rede, como pontua Patrícia: “Empregar uma mulher negra, como eu, que tem filhos, por exemplo, movimenta toda uma cadeia, já que estamos na base da pirâmide. Isso não só proporciona um espelho pessoal para quem está ao meu redor, mas também impulsiona financeiramente essa mulher, permitindo que ela leve outras pessoas consigo”. 

Essas formações oferecem uma nova perspectiva sobre a tecnologia para estas mulheres. Elas descobrem que, num ambiente acolhedor e diverso, conseguem aprender e prosperar neste mercado. “A formação não apenas transforma individualmente, mas também abre portas para uma mudança cultural mais ampla, promovendo inclusão e diversidade no mundo da tecnologia”, afirma Bahia. 

Carmela Borst ainda ressalta que essas mulheres, negras, periféricas e com mais de 35 anos, principalmente, são extremamente importantes para suas comunidades, já que muitas são mães e a principal fonte de renda da família. “Elas são as antenas. É a partir delas que tudo acontece. Quando fazemos com que a informação sobre capacitação e possibilidade de ocupar vagas abertas chegue a essas mulheres, o nível de adesão é muito alto. Isso acontece porque muitas delas não se veem nesses lugares”, afirma. 

Carmela Borst, CEO e fundadora da SoulCode Academy: “Quando quebramos essa percepção de que mais mulheres, principalmente mulheres negras, podem estar nessas posições, começamos a quebrar o ciclo” (Crédito: Divulgação)

Por isso, o principal propósito destas iniciativas é mudar o rosto da tecnologia. Quanto mais mulheres ocupam vagas neste mercado, outras passam a se ver neste espaço. “Precisamos fazer com que mais mulheres negras ocupem essas posições para serem reconhecidas pelas próximas gerações”, reforça Carmela. “Quando quebramos essa percepção de que mais mulheres, principalmente mulheres negras, podem estar nessas posições, começamos a quebrar o ciclo.” 

Para além da representatividade e do reconhecimento, tais iniciativas também promovem a inclusão e o letramento digital, um ponto muito crítico do nosso país. “Por isso, é crucial que programas como o nosso sejam gratuitos e amplamente acessíveis. A educação deve ir além das paredes de uma sala de aula, chegando a todos os territórios e conversando diretamente com essas comunidades”, completa Borst. 

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