O papel das marcas na construção de futuros regenerativos, com Lua Couto

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O papel das marcas na construção de futuros regenerativos, com Lua Couto

A consultora de inovação regenerativa propõe uma mudança de perspectiva e atuação para marcas e negócios pelas lentes do pensamento decolonial


6 de junho de 2024 - 14h39

Lua Couto é fundadora da consultoria Futuro Possível (Crédito: Raul de Lima)

Lua Couto é pesquisadora, palestrante, consultora e fundadora da Futuro Possível, consultoria que promove experiências de aprendizagem e imaginação social que unem regeneração, sabedorias ancestrais e noções de futurismo. Desde 2019, a organização desenvolve estratégias de inovação regenerativa e impacto socioambiental juntamente a marcas, e tem como clientes Rock in Rio Lisboa, Natura, Nivea, Unilever, Kimberly Clark, Ambev, entre outras. 

Nesta entrevista, Lua Couto fala sobre o significado da regeneração na construção de futuros e o papel das marcas, das lideranças e da comunicação neste processo. Além disso, ela propõe uma nova perspectiva para nosso modo de ser, pensar e sentir, a partir de experiências e conhecimentos decoloniais. 

Pode falar um pouco sobre sua trajetória profissional?

Eu sou de Belém, do Pará, e minha trajetória está profundamente ligada a esse lugar mágico, que ainda preserva uma relação com a cultura indígena. Belém, apesar de muitas vezes não percebermos, é uma das poucas capitais que mantém viva sua relação com a comida, a língua e a herança dos povos indígenas. Acredito que devemos cuidar dessa herança, especialmente na nossa região. 

Comecei na comunicação aos 18 anos, como redatora. Depois me tornei diretora de criação, trabalhando para uma mineradora. Um ponto de virada na minha vida foi quando investiguei os altos índices de alcoolismo e drogadição nos funcionários dessa mineradora. Nas áreas de extração, percebi que a forma como tratávamos a terra tinha impactos profundos em nós. Isso me despertou para a ecologia, algo que nunca havia estudado antes. Decidi que alguma coisa estava muito errada e, alguns meses depois, saí da empresa e abri meu próprio escritório. 

Minha trajetória começou a mudar. A regeneração entrou na minha vida, transformando meu trabalho e meu jeito de pensar e sentir. Isso trouxe mais significado à minha compreensão de quem sou, da minha ancestralidade e territorialidade. Comecei a valorizar aspectos que a colonialidade do saber desprezava. Investiguei e pesquisei, e hoje me apresento como pesquisadora de narrativas regenerativas. Trabalho de maneira independente, em diálogo com movimentos de base, articuladores, poder público e empresas. 

Meu trabalho atual se concentra em educação e consultoria. Dou aulas, palestras e promovo experiências de aprendizagem para a sociedade civil e empresas. Também consulto projetos que buscam inovação regenerativa. Apoio grandes organizações no Brasil e lidero uma pesquisa global sobre o estado da arte da regeneração humana. Meu foco é entender como o movimento se articula, especialmente no sul global, e como responde às demandas do norte. 

O que significa pensar um futuro regenerativo? 

Pensar em futuros regenerativos, como diz Ailton Krenak, é pensar sem corrimão. Ele fala sobre ampliar nosso estado de subjetividade. No sul global, sofremos um processo continuado de colonização, não apenas histórico, mas também na exploração do ser, do saber e do fazer, que ainda persiste hoje. 

Quando falamos de futuros regenerativos, estamos falando sobre coevoluir com os ecossistemas, algo que a mentalidade colonial não nos ensinou. Precisamos ir além dessa história única, eurocêntrica, que nos ensinou sobre trabalho, relacionamento, competição, razão acima da emoção, pensamento linear e que o mundo é um caos do qual precisamos nos proteger. Essa história está cheia de mitos, dogmas, códigos e linguagens que precisamos questionar para pensar sem corrimão. 

Se não olharmos criticamente para essa história, para nós mesmos, para nosso território e nossa maneira de operar no mundo, apenas reproduziremos essa história única, e a verdadeira inovação não acontecerá. Todos desejamos justiça social, felicidade para todos, fim da fome e um planeta saudável. Mas para isso, precisamos redesenhar nossos sistemas, nossas relações e nossa visão de nós mesmos. Essa transformação é tanto interna quanto externa. 

De que forma uma empresa pode incorporar a regeneração em seus negócios? 

Ela pode incorporar na cultura, primeiramente, porque se não o fizer, apenas estabelecer metas de emissão de carbono e de responsabilidade social será inútil. Se apenas definir metas sem mudar a cultura, estará apenas reproduzindo velhos padrões e impedindo a verdadeira transformação necessária nas pessoas, para que instituições e projetos se modifiquem. 

Para mim, tudo começa com a cultura. As pessoas precisam entender esse novo modo de fazer as coisas para criar produtos que realmente cuidem das pessoas e do planeta, colocando a vida no centro. As marcas precisam sair desse foco no consumidor, que muitas vezes desumaniza, e trazer a vida para o centro dos negócios. 

Quando a vida está no centro, naturalmente cuidamos das pessoas, do planeta e criamos produtos mais inteligentes que coevoluem com o ecossistema. Criamos ecossistemas de negócios onde as pessoas podem dar o seu melhor sem adoecer. 

Tudo isso pode parecer utopia, mas existem muitos movimentos nessa direção. E se não acreditarmos na possibilidade dessa transformação, isso custará nossa própria existência. O ecossistema é maior que o sistema econômico e se impõe sobre nós. Acho que isso está claro agora, não preciso mais convencer ninguém. 

E como é uma liderança regenerativa? 

Significa usar seu poder. Entendendo poder como um verbo: o que eu posso fazer? A liderança regenerativa não se trata de cargo ou status. Liderança, na perspectiva da regeneração, emerge de forma natural de um ecossistema. Não é alguém que se impõe como líder, mas sim uma postura que agrega, cuida e sustenta espaços para conversas difíceis. 

É uma postura com uma habilidade de gerar conexões que facilitam as conversas necessárias para o momento. Colabora para que novas perguntas surjam e para que as pessoas sintam-se capazes de respondê-las da melhor maneira. 

Lideranças regenerativas inspiram outras pessoas em direção à mudança. Com seu próprio fazer, mostram que a ideia de utopia não é bobagem, pois demonstram no cotidiano que é possível desafiar a lógica dominante, criar novas formas de fazer e de se relacionar. Entendem a diferença não como uma ameaça, nem o outro como alguém de quem se extrai algo, mas sim como uma oportunidade de enriquecimento mútuo. 

Como você trabalha a comunicação de projetos regenerativos com as empresas? 

Primeiro, eu me apoio nas ideias dos meus antecessores, nos pensadores que vieram antes de mim. Isso faz parte de um conhecimento e uma experiência que não são apenas meus, mas coletivos. Aprendendo com eles, consigo entender quais histórias podem ser geradoras de conversas importantes. 

A base da comunicação regenerativa é identificar quais conversas precisam acontecer nesse momento da história. A comunicação de projetos regenerativos deve ser fonte dessas conversas essenciais para a sociedade. As marcas não vão liderar ou estabelecer a verdade sobre esses temas, pois não são donas das causas, mas podem participar dessas conversas. 

Para isso, as marcas precisam entender sobre o que estão conversando. É necessário educar os times, afinal, uma empresa é feita de pessoas. A educação é uma das bases do meu trabalho, andando de mãos dadas com a comunicação. Sem isso, a comunicação pode se tornar vazia e resultar em greenwashing, porque as pessoas não entendem sobre o que estão falando. 

Então, no meu trabalho de consultoria, eu foco nas conversas importantes, no letramento dos times e em abrir espaço para uma comunicação sensível, que entenda as necessidades dos diversos públicos e coloque a vida no centro. 

Você tem desenvolvido o projeto Futurismo Ecológico Ancestral. No que consiste esse trabalho?

O Futurismo Ecológico Ancestral nasce da fricção que vejo acontecer devido ao fato de que a regeneração, como área de estudo, surgiu no Norte Global. Esses espaços estão cheios de pessoas brancas, especialmente homens brancos do Norte Global, decidindo o que é regenerativo e o que não é. 

Como uma mulher latina nascida na Amazônia, tenho muita experiência pesquisando esse tema. Percebi cedo que as comunidades ancestrais, indígenas e nativas, hoje marginalizadas, sempre operaram com a lógica da regeneração, co-evoluindo com os sistemas, colocando a vida no centro e entendendo a comunidade como um ativo principal. 

O Futurismo Ecológico Ancestral faz resistência não só ao movimento da regeneração, mas também ao futurismo, que é outro espaço dominado por pessoas brancas em posição socioeconômica privilegiada. A ideia é trazer conhecimentos afrocentrados e afroindígenas, compartilhando com o mundo a inteligência dessas filosofias e formas de ser, fazer e estar no mundo. 

O Futurismo Ecológico Ancestral é um conjunto de experiências de aprendizagem baseadas na perspectiva afrocentrada e afroindígena brasileira. Ele nos ensina a pensar o futuro respeitando os ecossistemas e os saberes ancestrais, construindo uma verdadeira inovação, além da inovação incremental proposta até agora. 

Quer deixar um recado para as lideranças das empresas? 

Acho que a mensagem para as lideranças interessadas em criar transformação e ser parte da mudança é que abram espaço interno suficiente para lidar com os riscos, medos, incertezas e o não-saber. Elas precisam sentar, ouvir e dialogar com saberes e territórios diversos, se descentralizar e se libertar desses conhecimentos obsoletos. Devem se permitir sentir e pensar a partir de outros lugares, onde possam transbordar o valor que produzem para o sistema como um todo, tanto humano quanto não humano. 

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