Pobreza menstrual em pauta: como marcas e organizações entraram na luta

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Pobreza menstrual em pauta: como marcas e organizações entraram na luta

Da distribuição de absorventes às campanhas de marketing, condição que impacta milhares de pessoas virou responsabilidade de todos


6 de setembro de 2023 - 16h24

(Crédito: LIGHTFIELD STUDIOS/Adobe Stock)

(Crédito: LIGHTFIELD STUDIOS/Adobe Stock)

Um problema silencioso e profundamente arraigado aflige milhões de mulheres e meninas em todo o planeta. A pobreza menstrual, muitas vezes negligenciada e ignorada, é uma realidade que impede o pleno desenvolvimento e bem-estar das mulheres, impedindo-as de viverem suas vidas com dignidade e igualdade. O tema recebeu maior atenção após o ex-presidente Bolsonaro vetar o projeto de lei que previa a distribuição gratuita de absorventes para estudantes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias. Logo após a polêmica, o veto foi derrubado e a lei promulgada.

No Brasil, 1 em cada 4 meninas são afetadas pela pobreza menstrual, segundo pesquisa da Always, com o Instituto Locomotiva. Por volta de 30% da população brasileira menstrua, o equivalente a 60 milhões de pessoas. No mundo, 500 milhões de meninas e mulheres não dispõem de instalações para cuidar de sua higiene menstrual, de acordo com o relatório Livre para Menstruar, da Girl Up.

Conceitualmente, a pobreza menstrual engloba diferentes pilares da experiência de menstruar. Ela inclui a falta de acesso a produtos de higiene, a medicamentos, a carência de serviços médicos, a ausência de instalações sanitárias adequadas, a falta de saneamento básico e coleta de lixo. Até mesma a falta de informações sobre o corpo e a menstruação, tabus e preconceitos contribuem para o agravamento do problema.

“Estamos falando de um conjunto muito amplo de fenômenos que acontecem simultaneamente e que atrapalham extremamente a vida das meninas, mulheres e demais pessoas que menstruam. Toda essa conjunção de fatores torna a experiência de menstruar ultra desconfortável e cheia de problemas”, explica Caroline Moraes, pesquisadora que participou do estudo “Pobreza Menstrual no Brasil: Desigualdade e Violações de Direitos”, da Unicef e UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas).

IMPACTOS DA POBREZA MENSTRUAL

“A forma como a pobreza menstrual incide sobre a população é muito assimétrica”, informa Caroline. “Sabemos que os grupos mais desprivilegiados são as meninas por conta da idade e por não terem renda. Também sabemos que devido à falta de acesso ao saneamento, as menstruantes do Norte e do Nordeste tendem a ser mais afetadas. Além disso, em virtude de toda a disparidade de raça que existe no Brasil, as meninas, mulheres e menstruantes negras acabam enfrentando a pobreza menstrual de uma maneira muito mais perversa e mais profunda”, reflete a pesquisadora.

Outro ponto de extrema importância é o impacto na educação que a pobreza menstrual pode causar. O Brasil tem cerca de 7,5 milhões de meninas que menstruam na escola, conforme o relatório Livre Para Menstruar. Entretanto, nem todas possuem condições de passar pelo ciclo com dignidade. Isso porque 213 mil estudantes não têm banheiros em condições de uso na escola e 65% delas são negras, relata o estudo. Logo, existe um grande problema de absenteísmo e até de evasão escolar causada pela pobreza menstrual.

Além dos impactos nos estudos, ainda existe um componente econômico relacionado à menstruação. “Estima-se que uma mulher gaste entre R$ 3 mil e R$ 8 mil ao longo de sua vida menstrual com absorventes”, diz o relatório da Girl Up. “De acordo com a PNAD Contínua (IBGE, 2020), a renda anual dos 5% mais pobres é de R$ 1.920. Portanto, as mulheres que se encontram dentro desta faixa de renda precisam trabalhar até quatro anos para custear os absorventes que usarão ao longo da vida”.

Os problemas ocasionados pela pobreza menstrual são extensos e impactam diferentes áreas da vida, incluindo o aprendizado nas escolas, as relações sociais, a autoestima e o aspecto psicológico, até mesmo sua vida profissional, econômica e saúde. Vale olharmos também para a mulher profissional quando menstruada e a exigência que a empresa espera dela no período. “Talvez ela não esteja na melhor condição de ter uma hiper produtividade. A gestão precisa ter mais sensibilidade para entender que a mulher está com uma enxaqueca ou uma cólica menstrual muito incapacitante e que ela precisa ir ao médico. Ou então trabalhar de home office. Essa flexibilidade ainda não existe na maioria dos empregos”, relata Caroline.

PAPEL DAS EMPRESAS

“As empresas precisam começar de dentro. É muito importante que elas tenham uma atuação, por exemplo, de parceria com o setor público e que ajudem iniciativas maiores. Mas primeiro, ela tem que fazer o arroz e feijão. Será que vem os banheiros dessa empresa estão adequados para menstruar?”, questiona Moraes. Outro ponto é a cultura da organização que não deve fomentar comentários negativos ou ‘brincadeiras’ para falar sobre o comportamento dessa pessoa quando menstruada. O ambiente deve normalizar a menstruação, e até mesmo acolher a mulher durante o período, oferecendo flexibilidade de horário e home-office, se necessário.

Outra política efetiva que auxilia o combate à pobreza menstrual dentro e fora do ambiente corporativo são campanhas de conscientização. A partir do caráter pedagógico do marketing, as campanhas podem promover uma normalização do fenômeno fisiológico, ou ainda, atacar a pobreza menstrual dentro do setor de atuação daquela empresa, seja oferecendo produtos menstruais, construindo infraestrutura adequada ou ainda, fornecendo acesso a serviços médicos de qualidade e sensíveis às questões relacionadas ao ciclo menstrual.

SEMPRE LIVRE

Daniella Brissac, vice-presidente de marketing e head de digital capabilities development (CCX) da Kenvue (Crédito: Divulgação)

Daniella Brissac, vice-presidente de marketing e head de digital capabilities development (CCX) da Kenvue (Crédito: Divulgação)

Daniella Brissac, vice-presidente de marketing e head de digital capabilities development (CCX) da Kenvue (ex-Johnson & Johnson), destaca como a publicidade tratava da menstruação de uma forma irreal. As propagandas traziam mensagens com foco na sensação de liberdade e retratando o sangue menstrual na cor azul. Para a Sempre Livre, a mudança começou em 2017, quando a marca passou a trazer mensagens mais realistas sobre a experiência da menstruação e os fluidos corporais, inclusive, finalmente retratando o sangue em vermelho.

Logo, a pobreza menstrual entrou em pauta nas comunicações da Sempre Livre. A campanha #DignidadeParaFluir trouxe a cantora Bivolt para compor uma canção sobre a realidade da pobreza menstrual no Brasil. A ação recebeu prêmios internacionais, incluindo um Leão de Bronze no Cannes Lions de 2022, na categoria “Wellness and Health”. Logo, a campanha expandiu para uma colaboração com a Unicef, a fim de levar educação e informação sobre saúde menstrual para meninas em duas capitais do Nordeste – Recife, em Pernambuco, e São Luís, no Maranhão – e já impactou 45 mil pessoas.

“A Sempre Livre trouxe esse assunto para quebrar com o tabu da menstruação, para que as mulheres se sintam livres de verdade para serem quem são e quem desejam ser. Como marca, sentimos que tratar da pobreza menstrual realmente era uma bandeira importante a ser levantada, principalmente num momento em que ainda tratavam esse assunto como um tabu, como algo que não se pode falar”, destaca Daniella Brissac.

PANTYS PROTEST

Por sua vez, a Pantys, empresa de produtos menstruais ecológicos, recentemente lançou um manifesto contra a pobreza menstrual, chamando outras organizações e o poder público para combater o problema. “Lançamos no site um manifesto com vários cenários de como podemos acabar com a pobreza menstrual no Brasil até 2030”, relata Emily Ewell, CEO da Pantys. O protesto já mobilizou quase cinco mil assinaturas e conta com o apoio de outras marcas como o Instituto C&A, Sempre Livre, Steal The Look, Care Natural Beauty e ONGs.

O plano propõe a criação de um “Fundo pela Dignidade Menstrual”, que seria abastecido por meio do recolhimento de 5% do valor dos impostos da comercialização de produtos de higiene menstrual. O fundo serviria para fornecer produtos menstruais, preferencialmente reutilizáveis, para pessoas que precisam, além de incentivar projetos e pesquisas que visam a promoção da dignidade menstrual no Brasil. Em segundo lugar, o plano também inclui a criação do “Grupo de Trabalho Extraordinário e Intersetorial, com membros do setor privado, sociedade civil e da academia para debater a implementação das políticas para Dignidade Menstrual”.

A marca de calcinhas reutilizáveis enfatiza a importância de se investir em produtos menstruais ecológicos, devido aos impactos que os absorventes tradicionais causam ao meio ambiente. Segundo o relatório da campanha, 15 bilhões de absorventes são descartados por ano somente no Brasil e o material leva mais de 500 anos para se decompor. Dessa forma, a empresa destaca os aspectos positivos que a distribuição de produtos reutilizáveis pode gerar. A calcinha absorvente, por exemplo, pode ser usada mais de cem vezes, proporcionando uma economia de aproximadamente R$ 6 mil no período de vida da pessoa e evita o desperdício de quase 200 metros quadrados de lixo. 

Emily Ewell, Fundadora e CEO da Pantys (Crédito: Divulgação)

Emily Ewell, Fundadora e CEO da Pantys (Crédito: Divulgação)

MOBILIZAÇÃO 

A Girl Up Brasil é um movimento que conecta meninas de todos os estados brasileiros para que sejam líderes e ativistas pela igualdade de gênero. A pobreza menstrual foi levantada como questão pelas meninas durante a pandemia, quando se discutia a distribuição de cestas básicas. “Eu gosto de contar essa história porque ela fala do protagonismo e do potencial transformador que as meninas podem ter”, relata Letícia Bahia, diretora executiva do Girl Up Brasil. “Elas se atentaram ao fato de que, via de regra, cesta básica não incluía absorventes”, lembra. 

Num primeiro momento, a organização se mobilizou com uma campanha para a arrecadação de recursos em sete estados. “Rapidamente, elas se deram conta de que isso não ia resolver o problema, porque as mulheres menstruam todo mês”, relata Letícia. A partir de então, a ONG preparou as meninas para liderarem a mudança. “A partir daí foi deflagrado um processo que hoje já soma mais de 50 leis e projetos de leis (PLs), todos puxados por elas”, afirma a diretora. Destas PLs, Letícia destaca como exemplos projetos de distribuição gratuita de produtos, mudanças na tributação e incentivo à pesquisa. 

Conforme relata Letícia Bahia, a distribuição é sim um dos caminhos para atacar a problemática, mas quando se trata da iniciativa de uma empresa, ela deve ser mais bem planejada. “Distribuição é um caminho interessante, mas isso precisa ser pensado com mais inteligência e necessita de acompanhamento de um processo no qual as empresas cuidem dessa logística, inclusive com os custos”, afirma a diretora. Portanto, a melhor forma que uma empresa pode participar da pauta é conversando com cada organização e entendendo como podem apoiar, o que pode contemplar o fornecimento de recursos ou ainda a promoção de campanhas de conscientização e fomento à pesquisa. 

“Compreendemos o receio das empresas em atuar com incidência política”, reflete Letícia. “Eu acho que o Brasil vem sendo muito feliz em conseguir avançar [na pauta] sem partidarizar”, continua. “É um desejo nosso que as empresas sejam mais ousadas, mais corajosas em relação a isso. E, claro, com o que as empresas sabem fazer de melhor que é a campanha, informação, e dá para trabalhar de forma muito lúdica, para tirarmos essa conversa de um lugar de tabu”, afirma a diretora da Girl Up. 

Alguns outros cases são, por exemplo, da Herself Educacional, que apoiou a pesquisa Livre Para Menstruar, da Girl Up. A Always é outra marca que também investe em pesquisa da temática no Brasil e já doou mais de 5 milhões de absorventes no Brasil e 80 milhões no mundo. Além disso, a marca também lançou uma aceleradora social para apoiar projetos de combate à pobreza menstrual, promovendo aceleração, apoio financeiro e de recursos. 

“As marcas precisam ser mais ativas e mais engajadas com a pauta. Elas precisam criar conhecimento e awareness em suas comunidades”, reforça Emily Ewell, da Pantys. Nesse ponto, a comunicação precisa abordar o tema de forma que não estigmatize a menstruação ou inferioriza a mulher por causa disso. “Tudo que busca quebrar esses tabus e superar esses estigmas é muito positivo. Mas, de novo, tem que partir de um ponto de vista que seja sensível, responsável e trazendo quem entende do assunto”, reflete Caroline Moraes. 

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