Comunicação

Em autoanálise, agências ponderam sobre resoluções de Cannes

Lideranças de criação frisam necessidade de reavaliação da busca muitas vezes desenfreada por prêmios

, Roseani Rocha, e i 22 de julho de 2025 - 6h00

Entenda o que é gerenciamento de crise.

(Crédito: Shutterstock)

Muitos são os questionamentos levantados a partir das polêmicas ocorridas na edição mais recente do Cannes Lions – que culminou na cassação de Leões da DM9, na investigação de videocases de campanhas premiadas de outras agências, como Africa Creative e LePub, e na demissão de lideranças criativas, como Icaro Dora e Felipe Cury (ex-CCOs da DM9 e LePub São Paulo, respectivamente).

Um deles é uma reflexão mais ampla sobre quais são os limites da ambição pela conquista de prêmios em festivais internacionais. É sabido que ganhar troféus e, principalmente, Leões, é algo que deixou de ser valioso apenas para as agências e para os profissionais de criação. Há alguns anos, muitos anunciantes passaram a desejar esse reconhecimento tanto quanto suas parceiras de comunicação.

Afinal, a chancela que um prêmio Cannes Lions dá às marcas e profissionais envolvidos pode impulsionar negócios e mudar carreiras. Diante disso, aumenta a pressão de holdings de comunicação, redes globais de agências e anunciantes sobre o saldo de troféus (sobretudo Grand Prix e Ouros) adquirido durante o festival de criatividade realizado na Riviera Francesa.

Guilherme Jahara, CCO da Dark Kitchen Creatives, afirma que o próprio festival – que há algumas semanas anunciou medidas que prometem maior rigidez na avaliação dos cases inscritos – desempenha um papel de alimentar uma “vontade insaciável pelo Leão”, o que atinge âmbitos pessoais, profissionais e corporativos. Esse estímulo atingiu um ponto crítico, diz o profissional, que obriga toda a indústria, não apenas a brasileira, a fazer uma autoanálise.

“Já não entendemos mais o que é relevante e o que não é. Você não se lembra de boa parte dos trabalhos que ganharam e não à toa. É uma quantidade enorme de prêmios. Mas, a princípio, a competição por performance vai continuar existindo, assim como a sede por premiações, que têm ajudado a revelar a qualidade criativa brasileira, mas não podemos balizar somente por Cannes”, avalia.

Flavio Waiteman, CCO da também independente Tech and Soul, concorda: “Precisamos olhar para outros lados também. No cinema, há o Oscar eo Sundance. Na música, tem o Grammy e o Festival de Montreal. Há muitas coisas que podem dar o selo de qualidade para a agência”, comenta.

Criação de reputação

O medidor de sucesso de uma campanha é, antes de mais nada, o impacto que teve para o negócio do cliente, ressalta Pernil, CCO da AlmapBBDO. Muitas marcas que fizeram trabalhos relevantes ao longo das décadas não ganharam prêmios no Cannes Lions.

“Tivemos cases que não vingaram. ‘Tormenta’ não passou dos shortlists, mas fez uma diferença para  O Boticário, para a agência e para o mercado. O mercado é nutrido pela competitividade e acho que chegou o momento de colocarmos as coisas nos seus devidos lugares. Prêmios continuam sendo importantes, mas temos que ter um nível de maturidade maior”, diz.

Mais rigor?

No começo de julho, a organização do festival apresentou o documento intitulado Novo Padrão Global de Integridade Criativa, que promete aplicar um sistema de verificação de fatos dos videocases por meio de análises conduzidas por IA e por especialistas em dados e mensuração.

Essa e outras medidas, como o banimento de agências e marcas da premiação por três anos – caso seja dectada alguma fraude no material de inscrição e no projeto em si – passarão a valer a partir da próxima edição, em 2026.

Para Waiteman, a resposta do Lions à crise reputacional joga contra o próprio festival. “Quer dizer que só agora é sério? Fiquei surpreso, porque as inscrições já são rígidas. Acho estranho que não esteja em vigor desde agora, me traz uma sensação de que o jogo não é tão claro”, questiona.

Na opinião de Erh Ray, presidente e CCO da BETC Havas, o festival tomou uma posição importante, que deverá mobilizar as empresas em torno de valores como a ética. “Todo mundo ficou falando muito do uso da inteligência artificial (IA), mas essa foi apenas a ferramenta. É muito mais sobre índole”. Ele acrescenta, também, que o festival ficou exacerbado em todos os âmbitos, do número das inscrições às ativações de marcas, empresas de tecnologia e mídia.

A culpa é de quem?

Segundo os profissionais consultados pela reportagem, é consenso de que o mercado publicitário está passando por um momento de autocrítica – e que não adianta apontar culpados, pois todos têm sua parcela de responsabilidade, seja na busca pelos prêmios, seja no caminho percorrido para emplacá-los.

Como afirmou em artigo publicado no Meio & Mensagem semana passada, André Kassu, sócio e CCO da CP+B Brasil: “Não é um dedo apontado, não é um tiro certeiro, muito menos uma bala perdida. Até porque o meu passado tem telhado de vidro. Uma boa parte de nós sabe como funciona uma máquina de produzir cases fantasmas. Sabe, inclusive, como essa máquina produz um verniz de quase verdade e como ela foi se sofisticando com o passar do tempo”, escreveu.

Para Célio Aschcar Jr., sócio e coCEO da AKM, ainda que as demissões na DM9 e na LePub tenham sido soluções práticas e esperadas, considerando que são agências que fazem parte de multinacionais com capital aberto, a ferida continua aberta. “Não é a demissão do Icaro e do Felipe que resolve. Se existe um lado bom de tudo isso é que estamos falando mais sobre IA e manipulação de dados”, aponta.

“Com certeza tem muita gente envolvida quando acontece uma coisa dessa. No prêmio, todo mundo se junta, mas, na tristeza, sobra para nós, criativos. O ponto positivo é que agora estamos tendo conversas mais maduras”, acrescenta Pernil.

Waiteman, por sua vez, acredita que o “job da vez” é o de recuperar a reputação sobre o modo de se fazer o trabalho, pois a reputação criativa é algo que já existe.

O silêncio dos anunciantes

O elefante está na sala, mas muita gente continua evitando enxergá-lo. A impressão que se tem é essa ao tentar abordar os problemas ocorridos no Cannes Lions junto aos anunciantes.

Procuradas para falar sobre a responsabilidade compartilhada pelos clientes com suas agências nas inscrições de prêmios como o Lions, assim como as possíveis repercussões das medidas adotadas pelo festival, algumas das mais importantes e premiadas marcas brasileiras, ou aqui estabelecidas, não se manifestaram (os argumentos foram de férias de executivos, passando por agenda atribulada até um “estão atendendo outra pauta”).

Mas uma executiva se manifestou claramente sobre o caso: Danielle Bibas, hoje CEO da Pierre Fabre Brasil e alguém que teve em sua carreira longas passagens por companhias como a P&G (quase 16 anos) e Avon (12 anos e meio).  Para ela, os clientes têm corresponsabilidade pelas inscrições com as agências. Mas, por mais triste que tenha sido toda a questão, justamente num ano em que o País era homenageado como Creative Country of the Year, o imbróglio servirá, em sua opinião, para, se não acabar, diminuir drasticamente a quantidade de cases fantasmas no festival, que tende a ficar melhor daqui em diante.

Ela conta que há cerca de dez anos, os organizadores do Cannes Lions fizeram uma pesquisa, ao promover uma grande mudança de categorias, com cerca de mil profissionais de todo mundo. Ao receber a enquete, Danielle já naquela época propôs que o festival deveria separar-se em dois: uma frente para a espécie de testes de ideias ousadas que viraram os fantasmas e outra para “cases reais, brifados por clientes reais, que seguem guidelines de marca, têm limites de budget e dizem respeito a resolver um problema de negócio e expressão da marca”. Caso contrário, acredita a executiva, o festival coloca dois pesos e duas medidas numa mesma categoria, o que é injusto.

E rememora um case antigo da própria P&G, no último ano em que foi a Cannes pela companhia de bens de consumo, para a marca de sabão Tide, nos EUA, que levou GP em Outdoor: “Era uma campanha belíssima. Um mosaico de fotos que, quando visto de perto, havia um monte de homens numa guerra, algo quase medieval; de longe, via-se uma gota do detergente limpando uma mancha numa roupa. Era um case que, depois do prêmio, foi que a Saatchi & Saatchi New York levou ao ar”. Ela conta a história para comentar, em seguida, que os chamados fantasmas podem até ter uma função de mostrar um potencial criativo mais arrojado, no entanto, a quantidade de fantasmas ganhando prêmios cresceu muito em detrimento da criatividade de fato aplicada e relevante. Para ela, a probabilidade de um cliente não saber se uma campanha foi inscrita “existe, mas é minúscula” e a culpa é do sistema todo e não basta demitir criativos, ainda que o nome do diretor de criação seja destaque na ficha de inscrição. Além disso, como exemplificou, nunca se tratou de um fenômeno exclusivo do Brasil.

Sobre as mudanças prometidas pelos organizadores do Cannes Lions e seus impactos, Danielle ressalta o reforço à questão de governança e que os anunciantes terão de estar mais atentos às questões éticas e mais próximos das agências. “Do ponto de vista do anunciante, o mais bacana é ganhar um prêmio sabendo que foi veiculado e teve impacto para sua marca. Os anunciantes são corresponsáveis; a ética é construída da relação que temos com as agências.”, argumenta.