Grupos de afinidade fortalecem presença feminina
Como redes de apoio entre mulheres promovem networking, visibilidade e desenvolvimento profissional
Como forma de combater a invisibilidade, o preconceito, a solidão e os percalços que a maioria das mulheres enfrentam no ambiente de trabalho, começaram a surgir iniciativas que reúnem mulheres em redes de apoio e com interesses em comum. São grupos como a Black Sisters in Law, de mulheres advogadas negras; Rede Mulher Empreendedora (RME); o Women Corporate Directors (WCD), para mulheres em conselhos administrativos; a Sororitê, para investidoras-anjo; a More Grls, para mulheres na criação publicitária, e tantas outras.
A Black Sisters in Law surgiu quando Dione Assis, advogada de reestruturação empresarial, foi convidada para palestrar em um congresso internacional de mulheres que atuam na área. “Lembro que as organizadoras me disseram: ‘Dione, estamos muito felizes de ter você aqui, mas gostaríamos muito de contar com mais mulheres negras’”, recorda. Com essa provocação, Dione foi atrás de outras advogadas negras para apresentar às organizadoras do evento e, assim, criou um grupo no WhatsApp, que hoje soma 8 mil advogadas racializadas de diferentes áreas, no Brasil e no exterior.
“Lá no início, a proposta era basicamente essa: nos conectar. Quando percebi que havia muitas profissionais qualificadas, mas sem espaço no mercado, e somado ao fato de que várias me procuravam no privado para relatar desafios com empregabilidade, inserção em escritórios ou acesso a clientes, comecei a pensar em como a rede poderia ajudá-las”, afirma Dione.

Dione Assis, advogada e fundadora da Black Sisters in Law (Crédito: Divulgação)
A invisibilidade frente ao mercado de trabalho também foi um dos motivos que levou Camila Moletta e Laura Florence a criar o More Grls, projeto que visa fomentar a presença feminina na área de criação nas agências de publicidade. As fundadoras perceberam a dificuldade de encontrar nomes de criativas mulheres para recrutar.
“No mercado criativo, que é muito baseado em indicações, sempre que pedíamos nomes, só recebíamos referências de homens. Quando falávamos que queríamos contratar mulheres, a resposta era que não havia. E a gente não aceitava isso como verdade”, conta Camila Moletta, cofundadora e CEO da More Grls.
O que essas fundadoras sabiam é que o problema não era falta de profissionais, mas, sim, a falta de visibilidade das mulheres nessas áreas, uma das grandes barreiras que elas enfrentam. Isso, segundo as criativas, é o que mais dificulta a permanência feminina nessas carreiras.
Na advocacia, Dione via uma realidade dura de mulheres negras que prestavam serviços a valores muito abaixo do mercado, ou, ainda, profissionais que não conseguiam se sustentar apenas com advocacia e acabavam recorrendo a outras ocupações para gerar renda, como babá, garçonete, faxineira, venda de bolo de pote, bijuterias e cosméticos de revista.
Marienne Coutinho, sócia da KPMG, foi uma das responsáveis por trazer a iniciativa do Women Corporate Directors para o Brasil. Há 15 anos, ela e outras envolvidas no projeto fizeram um mapeamento que identificou a falta de mulheres em conselhos administrativos. Para a executiva, a baixa representatividade se dava pela dificuldade de conciliar vida pessoal, maternidade e casamento com a carreira corporativa, o que levava muitas mulheres a abandonar cargos de liderança ou migrar para outras áreas e funções menos exigentes.
A baixa presença de mulheres nessas áreas também contribui para o aumento da solidão entre aquelas que persistem em suas carreiras. A solidão é ainda maior quando o recorte de raça é inserido na equação. “A maioria das sisters é a primeira da família a entrar na faculdade. E quando chegam lá, são, muitas vezes, as únicas mulheres negras naquele ambiente. O mesmo acontece no mercado de trabalho. Existe uma solidão real, física mesmo. E isso é para aquelas que conseguiram chegar. Muitas compartilham histórias parecidas sobre como foi difícil alcançar esse espaço e, ao mesmo tempo, como a realização esperada não se concretizou”, reflete Dione.
Networking produtivo
Apesar dessas mulheres terem formação em suas áreas, outro desafio que enfrentam é que, por terem dificuldades de se inserir no mercado, não são ensinadas habilidades essenciais como o networking. Ana Fontes identificou esta falha ao aprofundar no tema do empreendedorismo feminino.
“Entendi que as mulheres não são ensinadas desde cedo a desenvolver algumas competências fundamentais para o negócio, como comunicação, negociação e liderança, que os meninos aprendem naturalmente nas brincadeiras”, afirma a fundadora e CEO da Rede Mulher Empreendedora.
Tais grupos como o Black Sisters in Law, RME, WCD e More Grls, hoje, atuam para jogar luz sobre essas mulheres e mostrar para o mercado que elas existem e precisam de oportunidades. Iniciativas como essas não só conectam profissionais, mas também promovem capacitações, mentorias e apoio financeiro.
O More Grls, por exemplo, desenvolveu uma ferramenta que funciona como marketplace de talentos femininos, em que os recrutadores podem buscar e encontrar diferentes perfis de mulheres aptas para a criação publicitária. “Como existia essa ideia de que não havia mulheres no mercado criativo, designers, diretoras de arte, redatoras, fotógrafas e ilustradoras, decidimos mostrar para o mercado onde elas estão”, destaca Camilo Moletta.
A Sororitê, rede de mulheres investidoras-anjo, nasceu dessa mesma provocação: a necessidade de aumentar a conexão entre mulheres num ecossistema dominado pelos homens. “A Sororité nasceu há quatro anos, justamente a partir dessa dor: mulheres que queriam fazer investimento anjo sabiam que isso existia, mas não sabiam por onde começar. E, quando a gente ia a fóruns com outros investidores-anjo, sempre éramos minoria. Não era só uma sensação, os números mostram isso: só cerca de 10% dos investidores-anjo eram mulheres”, afirma Erica Fridman, cofundadora da iniciativa.
“Eu mesma, muitas vezes, me perguntava se aquele era um lugar para mim, se eu pertencia àquele espaço. Foi daí que surgiu a ideia de criar a Sororité como uma comunidade em que mulheres pudessem aprender juntas o que é ser uma investidora-anjo e como avaliar bons projetos, sempre criando conexões que podem virar negócios”, continua. Assim, a rede foi sendo desenvolvida a partir de dois pilares: networking e educação, oferecendo a informação necessária para que cada uma possa aprender e se desenvolver nesse meio.

Jaana Goeggel e Erica Fridman, cofundadoras da Sororitê (Crédito: Luciano Alves)
Para as especialistas, as mulheres nunca foram ensinadas a fazer networking para os negócios. “Historicamente, o networking sempre existiu entre mulheres, mas no formato corporativo, focado em falar de negócios e dinheiro, nunca foi incentivado para elas. Mulheres sempre trocaram ideias e experiências, mas isso acontecia no espaço reprodutivo, em casa, no convívio social, e não no espaço produtivo, que historicamente foi ocupado por homens”, reflete Camila.
Por isso, a base dessas redes é criar networking entre as profissionais das mesmas áreas. “Nosso trabalho é conectá-las para que façam parcerias, sociedades, arranjos produtivos e se sintam mais confiantes para buscar clientes, fornecedores e oportunidades”, ressalta Ana Fontes.
“Além do lado profissional, esses vínculos geram relações pessoais profundas, que vão além do simples contato de trabalho. O networking em grupos de afinidade cria empatia e um sentimento de retribuição, de ajudar umas às outras”, continua Marienne Coutinho.
Pertencimento
Ter espaços de acolhimento, de partilha e conexão geram pertencimento e desenvolvem essas profissionais. “Ter esses grupos é fundamental porque as mulheres se sentem muito fragilizadas e socialmente questionadas em sua posição e no negócio. Fazer parte desses grupos cria um senso de autocuidado, pertencimento e dá força, a gente se sente mais potente”, afirma Fontes.
Tais grupos criam espaços seguros para que essas mulheres façam coisas, muitas vezes básicas, mas que em outros ambientes não se sentem seguras para fazer perguntas, vender, apresentar seus negócios, pedir favores ou negociar. “Aqui na rede, a gente sempre diz que o melhor networking que elas podem fazer é ajudar outra mulher. Quando você ajuda, se coloca disponível, você abre portas e conecta pessoas”, continua Ana.

Ana Fontes, fundadora e CEO da Rede Mulher Empreendedora (Crédito: Ana Paula Silva_Anapê)
“É fundamental ter um lugar em que você se sinta confortável para existir, fazer perguntas e se sentir parte. Quando você começa a jornada de querer ser investidora-anjo e não conhece ninguém, não entende nada do assunto, é difícil saber por onde começar. Você chega num ambiente onde todo mundo já sabe tudo e não se sente à vontade nem para perguntar, e isso dificulta muito”, destaca Erica.
Capital nas mãos femininas
Outro ponto importante para essas redes é a possibilidade de fazer o capital chegar à mão dessas mulheres. A Sororitê, por exemplo, reúne mulheres investidoras anjo que desejam investir em startups lideradas por outras mulheres.
“No nosso caso, a ideia é que essas startups lideradas por mulheres tenham muito sucesso, multipliquem o dinheiro investido e, depois, essas fundadoras, já capitalizadas, reinvistam em outras mulheres, em outras fundadoras”, explica Fridman.
“A lógica é: se posso investir num homem ou numa mulher, escolho investir numa mulher. Na Sororitê, a gente contrata mulheres advogadas, assessoras de imprensa, enfim, sempre que possível, buscamos colocar o capital na mão de outras mulheres”, continua.
A mesma lógica se aplica para a Black Sisters in Law. Devido à dificuldade financeira que muitas advogadas negras passam, Dione Assis começou a organizar a rede para promover os serviços de suas associadas. “A gente entendeu que não dava mais para só conversar, era preciso gerar renda. Começamos a fazer parcerias com grandes escritórios e empresas, priorizando aquelas com atuação nacional, para levar oportunidades de trabalho às nossas integrantes no Brasil inteiro”, conta.
Até mesmo dentro dos grupos esse fenômeno ocorre. “Com o tempo, comecei a notar um movimento espontâneo de autocontratação. Como já tínhamos muitas colegas com especializações diferentes, elas mesmas começaram a procurar referências dentro do grupo. ‘Tem alguma colega que atue com direito criminal?’, ‘Alguém de família?’, ‘Alguém desse estado?’. E essas conexões começaram a gerar oportunidades de trabalho”, relata Assis.
O impacto dessas redes é direto e gera um retorno concreto para essas profissionais. “Temos dados de uma pesquisa que fizemos: 60% das mulheres aumentam o faturamento depois que entram na rede e participam dos nossos programas. Mais de 40% que não tinham negócio formalizado conseguem formalizar depois de participar”, destaca Fontes.
Representatividade
Além disso, essas redes também contribuem para aumentar a presença feminina em mercados dominados por homens. “Na época que começamos, existiam cerca de 10% de mulheres investidoras-anjo, e agora são 17%, quase o dobro”, afirma Erica.
O mesmo ocorreu com as mulheres em conselhos. “Ano a ano, acompanhamos o crescimento do número de mulheres nos conselhos. Ainda não há paridade, mas o avanço é significativo. A WCD atua no Brasil há mais de 16 anos e hoje reúne mais de 400 associadas, todas conselheiras, um cenário bem diferente do início, quando a maioria ainda não ocupava esses cargos”, relata Marienne.

Marienne Coutinho, sócia da KPMG e membro do conselho consultivo da WCD no Brasil (Crédito: Divulgação)
Como efeito, ter espaços exclusivos para mulheres permite que elas se enxerguem naquele mercado, que tenham modelos a se inspirar e que sejam reconhecidas por seus trabalhos. Dione Assis conta que a Black Sisters in Law começou a ser procurada por pessoas que haviam sofrido racismo e buscam uma advogada para lhes defender.
“Talvez, se a rede não existisse, essas pessoas nem se sentissem estimuladas a buscar ajuda. Então, há essa rede de advogadas negras que compreende essa realidade e sabe como usar as ferramentas jurídicas para buscar soluções. Isso acaba despertando nas pessoas a consciência de que elas não precisam naturalizar as violências raciais que sofrem, e que podem lutar por seus direitos”, destaca.
Esses grupos também produzem impactos que reverberam no mercado, sensibilizam pares que podem atuar como aliados e impulsionam outras iniciativas de apoio às mulheres em diferentes áreas.
“Com certeza, novas temáticas vão surgir, e é importante que as mulheres jovens dessa nova geração estejam atentas, não só para usufruir dos benefícios que conquistamos, mas também para olhar com carinho pelas próximas gerações, garantindo que esse processo continue evoluindo”, reflete Coutinho.
“Vejo que esses grupos cumprem uma função social muito importante, porque são formados por mulheres influentes, com cargos de poder e acesso, que podem realmente fazer a diferença. Costumamos dizer que, além das questões técnicas, sempre carregamos o propósito de querer um mundo melhor. Pode ser um mundo mais justo como sociedade ou um ambiente profissional, corporativo e de negócios mais saudável. Esse espírito de colaboração, de pessoas do bem que querem melhorar as coisas, é muito bacana. Dá muito orgulho e prazer participar de um grupo em que você está cercada por pessoas que compartilham os mesmos interesses e valores”, conclui Marienne.