Memórias de um velho criativo

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Opinião

Memórias de um velho criativo

O assunto aqui não sou eu, é quem passou por mim e me fez melhor. Quem dobrou meu paraquedas, como naquela história que você deve conhecer


4 de fevereiro de 2020 - 11h46

(Crédito: Nihatdursun/ iStock)

A gente vai ficando velho e vai ficando nostálgico. E a nostalgia, não tem jeito, é piegas. Ainda assim, vou ceder a esse deslize aqui.

Ter sido sócio e diretor de criação de uma agência de propaganda, a Grottera & Cia. (*) foi, certamente, uma das experiências profissionais mais gratificantes da minha vida e devo a ela a maior parte do que sei (é pouco, mas é o que temos para o momento) sobre criação, publicidade e agências de propaganda.

Hoje, sei criar e olhar campanhas e todo trabalho criativo que passa na minha frente como quem fez e, de alguma forma e com intimidade, entende o ofício, a linguagem, a estética, a lógica e, ao fim e ao cabo, este business. Quero dizer, por dentro.

Mas o assunto aqui não sou eu, é quem passou por mim e me fez melhor. Quem dobrou meu paraquedas, como naquela história que você deve conhecer. E a quem agradeço que ele se abriu tantas vezes nas horas em que precisei. Desde já, obrigado.

E, desde já também, desculpem os que eu, porventura, possa ter esquecido de citar. Velho é uma merda, esquece.

Sem dúvida alguma, os profissionais que vou citar foram melhores do que eu e hoje, cada um do seu jeito, andam por aí na vida, liderando em posições de destaque o fazer criativo. No Brasil e mundo afora.

Sem qualquer ordem hierárquica, mas apenas porque fui achando melhor assim, vamos a uma listinha dos meus amigos (todos seguem sendo, graças a Deus) de jornada.

Os primeiros desavisados

Átila Francucci, ele mesmo, chegou um dia na agência vindo da house da Folha de S.Paulo, com alguns textos de folhetos e anúncios de varejo, além de textos pessoais, buscando uma oportunidade de redator. Os textos pessoais, obviamente, eram os mais legais, e o Átila começou como um redator júnior para, em pouco tempo, se destacar com seu inequívoco talento.

O Átila seria diretor de criação renomado de várias das grandes agências do País, montaria agências próprias e segue sendo um dos maiores nomes da profissão. Ganharia, depois da Grottera, 17 Leões em Cannes, festival do qual foi também jurado por três vezes. Ganhou Caboré como Profissional da Criação e teve (aliás, acho que ainda tem) brilhante atuação em campanhas políticas nos últimos dez anos. Átila é vice-presidente de criação da Nova/SB. Mas nada disso se compara, nem de perto, às imitações que sempre fez de todas as figuras populares da época e seu espírito anárquico-debochado sobre praticamente tudo. Humorista e gênio.

Seu dupla era um cara chamado Marco Versolato, agora e, desde 2015, CCO da Wunderman Thompson, de Cingapura. Chegou à agência mostrando como portfólio alguns cartões de visita. Eram meio crus, mas eram de alguém talentoso. Começou como diretor de arte júnior, virou sênior em pouco tempo, seguiu a vida pós-Grottera para se transformar em um premiadíssimo e “leonado” diretor de criação (mais de 20 Leões em Cannes) com passagens, entre outras, pela Lew’Lara, Almap, DPZ, Y&R, DM9, até a Wunderman Thompson na Ásia. Na apresentação oficial do Versola, a gente lê assim: “I’m Marco Versolato and for the last year I have been for 2 years the Global Executive Creative Director for major brands at Unilever, like Lux, Lux Hair and Sunsilk and also have the pleasure to be the CCO of JWT Singapore, which holds exciting clients such as ASUS, Pizza Hut, Friso, HSBC, Johnson & Johnson, Shiseido, Shell, Samsung, CPF and Listerine.” Fera!

Esses dois caras formaram a dupla mais hilária da agência por anos porque criavam, além das campanhas, um volume sem fim de quadros de humor, que nos dava a todos vontade de acordar e chegar no trabalho para ver qual seria a nova dos dois no dia.

Pela Grottera, passou também o Wilson Mateos, que chegou na agência para estagiar por ser filho de um dos meus sócios, o Beto Genistretti, e lá foi ficando e crescendo. Quando o Wilson chegou, imaginava-se que em não muito tempo, ao término do estágio, iria picar a mula, só que não.

Meus sócios brincavam que ele era o “filho do Pyr”, porque eu, de fato, o olhava com carinho, que nascia de enxergar nele um potencial e uma luz própria, que nada tinham a ver com o fato dele ter chegado na agência por ser filho de um amigo do dono.

Por persistência minha e talento dele, virou membro oficial e ativo da criação da agência. E sua história, antes de aceitar o cargo que ocupa de vice-presidente de criação da Leo Burnet, ele mesmo nos conta: “I accepted this position after working in the U.S. market for two years, where I was a CD at David & Goliath (Kia Motors) and 180LA (University of Phoenix). Before my big international adventure, I spent more than 25 years in the largest and most creative agencies in Brazil. I was a copywriter at FCB, Lew’Lara\ TBWA, F/Nazca Saatchi & Saatchi, and AlmapBBDO; and was a creative director at NeogamaBBH, Y&R, DM9DDB, and CuboCC.” O Wilsinho ganhou nada menos do que 11 Leões em Cannes.

Esteve por lá também o incrível e improvável Ad Murphy, ou Eddie, ou o Marco Antonio do Nascimento, certamente a história mais comovente da minha vida como diretor de criação e sócio da Grottera (a brincadeira com o nome do Eddie vem de sua irritante semelhança com o ator e comediante norte-americano Eddie Murphy … E que virou depois, claro, Ad Murphy).

No curriculum oficial do Eddie está lá: Grottera (São Paulo, Brazil) — Office-boy, Controller, Traffic Assistant, Jr. Art Director, oct/92 — sep/96.

Isso mesmo, o Eddie chegou como office- boy. Vinha de bairro e família humildes. Entre um trabalho e outro de boy e, às vezes, ajudante de tráfego na agência, ia para o estúdio e ficava desenhando. Criava suas próprias versões das campanhas que estávamos trabalhando e vinha me mostrar. Demos chance para o Eddie contratando-o como o pó da rabiola do estúdio. Long story short, nosso Eddie passou como diretor de arte por algumas das grandes agências no Brasil para, em alguns anos, mudar-se para Europa, onde mora até hoje, mais especificamente em Barcelona, na Espanha, onde é diretor de arte na agência C14torce. O Eddie fala alemão, inglês e espanhol e sua lista de prêmios nacionais e internacionais é impressionante. Num apanhado atualizado até 2019, estão lá listados mais de cem prêmios, entre eles, 10 Leões em Cannes. Seu primeiro trabalho oficial na Grottera foi um logotipo para uma empresa de energia. “Orguio”.

Quando experiência e talento se juntam

Três profissionais de peso e muito mais experientes do que eu atuaram na Grottera também. O brilhante designer e diretor de arte Reginaldo Camargo, especializado em moda, de um bom gosto e elegância de cair o queixo; o redator genial Jacó Cajaíba, criador, entre outras grandes campanhas, do “leonado” comercial “Carlitos” (ele e o Reginaldo faziam uma dupla, ambos já falecidos) e o Julio Mola, também designer e brilhante diretor de arte, que na época importamos da Europa, onde já havia feito campanhas lindas e de destaque internacional, e com quem foi, para mim, altamente gratificante trabalhar como dupla, sendo ele um profissional de padrão world class, como era (e ainda é … O Julio atua na On Design).

O cara da gaivota de papel

O Drauzio Cragnani é há anos dono de sua própria agência, a Cragnani, não deixando de ser, ao mesmo tempo, um artista e curador de arte de renome.

O Drauzio protagonizou, certamente, a história de abordagem de emprego mais criativa e inesperada de que pude participar. Eis que certa manhã entra o segurança da agência na minha sala com um envelope nas mãos, dizendo que havia um jovem lá na portaria esperando para ser recebido por mim e que não sairia de lá até que eu conversasse com ele. Abri o envelope e havia dentro uma dobradura de papel no formato de uma gaivota. Fui desdobrando e havia nela um longo texto dissertativo explicando por que eu devia contratá-lo como redator. Basicamente, a ideia era que, com ele e suas ideias inspiradas, a agência ia voar. Genial. Obviamente, contratei o Drauzio, que começou na agência como redator júnior. Criou campanhas sempre originais e uma marca socialmente relevante, Sou da Paz (já fora da Grottera). Uma alma que voa e inspira quem o conhece, desde sempre.

Nossa filial no Rio e os dois mestres cariocas

Um dia resolvemos — na verdade, seguimos os sócios numa ideia original do Luís Grottera — abrir uma filial no Rio, com nossa admirável, altamente competente e eternamente querida Maria Alice Langoni, uma nacionalmente reconhecida profissional de planejamento que se transformaria em sócia e head do escritório carioca da Grottera. Lá, tive a honra de trabalhar com dois dos grandes nomes históricos da criação do Rio, Delano D’Avila e Gustavo Bastos. Nomes que marcaram a criatividade do Rio de Janeiro e, de quebra, do País, por anos.

Quando vieram para a agência, em momentos diferentes da nossa trajetória, ambos já eram nacionalmente conhecidos e premiados. O Delano havia revolucionado com seu bom gosto o padrão criativo do varejo brasileiro, com suas memoráveis campanhas para a Mesbla. O Gustavo seria o sócio criativo no Rio e, bom, continua brilhantemente na ativa até hoje diante de sua própria agência, a onzevinteum, tendo se consolidado como referência na profissão desde sempre.

Os consolidados talentos nacionais

Pela criação da Grottera, passaram, ainda, todos premiados e reconhecidos em suas carreiras no Brasil, o Fernando Rodrigues, vice- presidente de criação da Z+, com longa passagem de 16 anos pela DPZ, onde chegou a diretor nacional de criação (numa agência com essa história, um feito de tirar o chapéu, sem dúvida); o Marcelo Prista, o então Bolacha, diretor de criação de várias agências, mais recentemente na África e, finalmente, COO da Z515; o Wagner Brenner, redator, que, quando contratei, vinha da McCann — o que, para a Grottera, na época, era um luxo — e que depois passaria por outras agências, mas cujo marco mais importante — pelo menos, penso assim — foi o de ter criado o Update or Die (que o Walter Longo ajudou a crescer e tem, até hoje, o talentoso e querido Gustavo Giglio no comando).

Passaram por lá ainda o brilhante e inquieto redator José Carlos Godoy, torcedor do Santos como eu. Com ele, a agência ganhou alguns de seus primeiros prêmios e com ele aprendi que anúncio de oportunidade é oportunidade para a agência (e que ela deve, sem dúvida, aproveitar) e que ser inquieto e questionador pode ser a mola-mestra ininterrupta da criatividade.

Só porque criou o mundo, pensa que é Deus

Citação de luxo para o impagável e insuportavelmente talentoso Carneiro, Henrique Szklo para os íntimos, redator de alguns dos textos publicitários mais bem elaborados que já li e que escreveu também livros hilários como o Só Porque Criou o Mundo Pensa que é Deus.

O Carneiro, depois de sua passagem pela agência, tornou-se meu colaborador com sua coluna Vida de Cannes, para a Revista da Criação, e segue sendo meu colaborador no site ProXXIma, sempre com sua visão crítica de humor judeu descendente em linha direta de Woody Allen.

O Carneiro é um pensador da criatividade e comanda há anos seu projeto Escola Nômade para Mentes Criativas, espalhando criatividade com método e didática para quem quiser ter o privilégio de participar dos cursos e palestras que dá.

Os queridos

Passaram por lá ainda os adoráveis diretores de arte Reinor de Mello, há décadas com seu estúdio próprio de criação e design, o Art3; a redatora elegante e sempre sorridente Martha Duescher; além, é claro, de minha “cumadre” Marli Damian, com quem tive o prazer de produzir alguns livros, entre eles o que registra a história de 60 anos da Abap.

Para finalizar, registro ainda que fui também diretor de criação da ex-planejadora, que migraria para a criação, Luciane Castagna, mãe da minha filha Clara, e com quem estou casado há 25 anos. Até essa felicidade a Grottera me proporcionou.

Todos esses excelentes profissionais, a maior parte deles bem mais talentosos do que eu, fizeram parte profunda da minha história e ajudaram a moldar o profissional que sou hoje. A todos, um agradecimento sem fim.

(*) Virar sócio e diretor de criação da Grottera foi obra insana do Luis Grottera, então um dos nomes mais destacados e inquietos profissionais do mundo da mídia, planejamento estratégico e, depois, também como empresário, da nossa publicidade, notadamente nos anos 1980 e 1990. Foi o Luis que ‘inventou’ o Pyr como diretor de criação. Como deu apenas meio certo, apenas meia culpa é dele :-). Devo aqui agradecimentos memoráveis também aos meus queridos sócios Manuk Masseredjian, Beto Genistretti, Ricardo Ramos, Maria Alice Langoni, Gustavo Bastos, Manual Mauger, Paulo Grottera e Dilú Freire, que me aturaram e me estimularam nesses meus anos de criativo meia bomba.
(**) Estive na Grottera & Cia por dez anos, desde sua fundação, em 1985, período narrado acima. Anos após minha saída, a empresa foi vendida para a TBWA.

*Crédito da foto no topo: mfto/istock

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