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Opinião

Fogo no parquinho

A ascensão das plataformas digitais ao longo das últimas duas décadas e a consequente mudança no ecossistema da publicidade têm provocado abalos sísmicos nas relações do mercado


9 de fevereiro de 2021 - 14h23

(Crédito: Sorbetto/ iStock)

Grandes decisões, em geral, são tomadas baseadas em múltiplos fatores e algumas camadas de complexidade. Por isso, merecem ser analisadas com um certo distanciamento. O recente anúncio da saída da Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) do Conselho Executivo das NormasPadrão (Cenp) é um desses momentos. Há vários anos, o Cenp vem enfrentando uma crise existencial que tem resultado no seu estado atual de esvaziamento. Primeiro, foi a vez do IAB (Interactive Advertising Bureau), que deixou a entidade, em 2019, alegando não ter direito a voto em importantes decisões que afetam o ecossistema digital. E agora, quando 2021 ainda dava suas primeiras lufadas, a pá de cal da ABA, alegando também não se sentir representada na entidade, acabou por jogar luz não só sobre a razão de existir do Cenp, mas sobre o momento de encruzilhada que vive o mercado publicitário nacional.

Tive o privilégio de cobrir a formação do Cenp, quando ainda repórter do Meio & Mensagem, na segunda metade da década de 1990, em um momento onde a configuração do mercado era completamente distinta da atual. Na época, o embaixador Sergio Amaral, então titular da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) e porta-voz do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, decidiu, em 1996, desregulamentar um decreto que regulamentava a Lei 4.680, que previa a comissão de 20% para as agências de publicidade. A iniciativa se deu porque ele percebeu que o governo federal era o único cliente do mercado publicitário que cumpria esse teto de remuneração e, ao consultar a prática corriqueira na iniciativa privada, constatou que os percentuais de comissão eram bem mais baixos que esse patamar.

Entre a desregulamentação e a formação do Cenp, foram pouco mais de dois anos de intensa negociação, liderada por Petrônio Corrêa, que aglutinou os interesses dos três grandes entes que formam o mercado: agências, anunciantes e veículos. O modelo bem-sucedido de autorregulamentação do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), criado em 1980, era a grande referência para a entidade que estava em formação naquele momento. Obviamente, a resistência maior em torno de regras alinhadas conjuntamente vinha da ABA, mas, após intensa negociação, o Cenp foi lançado em 1998.

Vale dizer que um ator extremamente importante para colocar o Cenp de pé naquele momento foi o Grupo Globo. A desregulamentação do mercado abria espaço para a entrada no Brasil dos temidos bureaus de mídias, agências especializadas em compras de mídia que atuam em todos os principais mercados mundiais. Além da definição de parâmetros plausíveis para as relações comerciais do mercado, a defesa do modelo brasileiro de agências ter mídia e criação integradas, acabou se tornando também uma das principais bandeiras da criação do Cenp e o apoio da Globo foi fundamental naquele momento de transição.

A ascensão das plataformas digitais ao longo das últimas duas décadas e a consequente mudança no ecossistema do mercado publicitário, com o desaparecimento ou diminuição da força e espaço de players oriundos das chamadas mídias tradicionais, têm provocado abalos sísmicos nas relações do mercado. Nesse contexto, os anunciantes estão sendo pressionados por mais eficiência e retorno dos seus investimentos em mídia e têm descoberto novas formas de se relacionar com seus diversos públicos por meio de opções cada vez mais fragmentadas. A interlocução com as inúmeras empresas que formam o emergente mercado de martechs, creators e plataformas têm sido feita, muitas vezes, diretamente pelas áreas de marketing. Muitas delas, inclusive, estão optando por internalizar serviços e profissionais que antes ficavam alocados nas agências.

E, em alguns casos, há um retorno ao modelo de house agencies, algo bastante temido na época em que o Cenp foi criado. O caso emblemático dessa opção é o da Unilever, segundo maior anunciante do País, que tem colocado em prática esse modelo por meio da parceria com a Oliver.

Soma-se a isso o fato de que as áreas de compras ganharam um espaço expressivo nas negociações comerciais dos clientes com suas respectivas agências e os critérios dessas negociações, quase sempre, seguem parâmetros bastante distantes dos colocados nas normas-padrão do Cenp.

O fato é que neste início de terceira década do século 21, premido por múltiplos fatores, o Cenp vive sua mais decisiva hora da verdade. Se o tripé de sustentação da entidade já estava com um de seus pilares, o de veículos, um pouco cambaleante, com a saída do IAB, que representa o segmento que mais cresce no bolo publicitário, agora que a ABA também bateu em continência, se sustentar com apenas dois desses três pilares, fica praticamente inviável.

Um outro elemento nessa equação é a transformação pela qual passa o Grupo Globo e a pressão política para que o BV (bônus sobre volume) deixe de existir. Acrescente nesse caldeirão mais um fator que dificulta ainda mais uma repactuação do mercado com vistas a enfrentar um cenário de rupturas: a falta de lideranças capazes de aglutinar interesses e articular uma renovação das relações institucionais do mercado.

A boa notícia é que o mercado publicitário brasileiro é sólido e muitos relacionamentos entre agências e clientes passam regulamente por ajustes em direção a contratos mais sustentáveis tanto do ponto de vista comercial quanto de novos patamares de entregas e dedicação. Isoladamente ou em grupos, a partir dos movimentos das grandes holdings, há vários anos, muitas agências têm feito exercícios de cenários sem o BV — obviamente, sempre no quadrante do cenário mais pessimista.

O ano de 2020 demonstrou que a distopia veio para ficar e lidar com contextos adversos e longe do ideal transformou-se em realidade. O Cenp é uma conquista importante do mercado. No entanto, o contexto para o qual foi criado já não existe mais e talvez tenha faltado habilidade e força política para a criação de uma nova agenda, mais propositiva e em linha com o mundo novo que se descortina diante dos nossos olhos.

Esvaziada e sem uma proposta de valor, a entidade tem, hoje, seu futuro incerto. Institucionalmente, é um golpe duro. Mas, do ponto de vista prático, a história demonstra que rupturas, às vezes, são necessárias para novos saltos evolutivos. Que assim seja.

*Crédito da foto no topo: Mfto/ iStock

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