A sucessão que importa: a da preferência dos consumidores

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Opinião

A sucessão que importa: a da preferência dos consumidores

A TV está prosperando em milionários verdadeiramente tristes e nosso desdém por seus excessos impensados


19 de janeiro de 2022 - 12h18

(Crédito: Shutterstock)

A julgar pelas menções no Twitter e pela crítica da imprensa americana, não há como negar que a série mais relevante e mais viciante da televisão nos últimos tempos é Succession da HBO. A estreia da terceira temporada, em outubro, foi assistida por 3,8 milhões de pessoas no primeiro dia – um recorde histórico.

Succession é apaixonante e inspiradora por múltiplos prismas. Se você não conhece nada sobre a trama, trata-se da história da família bilionária Roy, vagamente baseada nos Murdoch. Eles têm um enorme império de negócios – linhas de cruzeiros, parques temáticos, estúdio de cinema, canais de notícias e jornais impressos – liderado pelo patriarca Logan Roy (Brian Cox), que ainda não anunciou seu sucessor entre os quatro filhos. A premissa pode soar como uma novela diária na qual os irmãos estão tramando uns contra os outros para chegar ao topo e planejando o assassinato do pai, mas a série é tudo menos isso.

Daria para escrever sobre todos os aspectos da cultura corporativa na gestão de carreira em conflitos geracionais ou talvez discorrer sobre efeitos psicológicos únicos nas empresas familiares e, ainda, da fronteira tênue entre fantasia e realidade do ponto de vista jurídico e financeiro de alguns episódios. Mas além de eu não ser qualificado para me manifestar sobre essas pautas, há infinitas opções de críticas, artigos e podcasts que trilham esses temas com maestria.

Minha provocação aqui é entendermos alguns movimentos notórios de como os consumidores se comportam em relação à escolha de conteúdo e entretenimento, para assim, buscarmos compreender a lógica e os bastidores que constroem ATENÇÃO – que é o ativo mais valioso para todos nós de marketing e comunicação no exercício diário de nossas funções.

Nos últimos anos, dinheiro e negócios têm figurado com destaque nas produções televisivas, ainda que “o cara mais rico da cidade” sempre tenha sido alvo de interesse do público, já sendo um antigo mantra na dramaturgia. A mudança agora é que as pessoas aprenderam nas últimas décadas a ver o drama nos eventos de negócios e a olhar mais para os bastidores políticos das grandes empresas. Há algo que parece nos intrigar quando titãs corporativos não agem de modo empresarial.

A televisão, há muito, é obcecada por riqueza extrema, mas tradicionalmente explorou-a de maneiras que a tornaram uma fantasia descaradamente atraente, um mundo que teríamos a sorte de habitar.

Mas são os programas que realmente problematizam a riqueza e tiram o seu glamour os maiores pontos de notoriedade agora. A TV está prosperando em milionários verdadeiramente tristes e nosso desdém por seus excessos impensados. Esses programas também enfatizam os dilemas grotescos que a riqueza e o privilégio colocam nas pessoas. Em Succession, um banquete inteiro é jogado fora sem cerimônia com um aceno de mão de Logan Roy. Ele nunca vê o banquete chegando às lixeiras, mas nós vemos. Ele não se importa, mas nós sim.

Parte do apelo desses programas é o alto nível de indecência moral que eles oferecem ao público sobre essas pessoas ricas desprezíveis ou sem noção. Enquanto os programas de riqueza do passado, como Sex and the City ou Keeping up with the Kardashians negociavam a fantasia de que “‘Eu poderia ter esse tipo de vida. Eu poderia ter esses sapatos, eu poderia ter essas roupas. Eu poderia viver nesta casa. Eu poderia ser essa pessoa’, as séries a que estamos assistindo hoje fazem você fantasiar “Eu poderia dizer a essa pessoa que ela é horrível na cara dela”.

A perspectiva de quem está a serviço dos ricos também está no centro da atual reformulação da riqueza na TV e tem sido fundamental na capacidade dos espectadores de se conectarem com esses programas. Mais obviamente, é o caso de Round 6, em que os bilionários são caricaturas absurdas, mascaradas, apenas brevemente deslumbradas, e a maior parte do tempo é empenhado em assistir desesperados financeiramente se digladiando por um prêmio.

Succession, por outro lado, mantém o foco em seus personagens super ricos e é possivelmente por isso que já tenha sido acusada por alguns de ser fortuita ou efêmera. Embora não possa escapar da mídia tentando enquadrá-la dessa maneira, com artigos sobre como recriar os guarda-roupas de seus personagens ou alugar as propriedades nele apresentadas, sua essência está longe disso. Há uma frieza no retrato do autor Jesse Armstrong.

Na série não se vê muita graça no materialismo por estabelecer a riqueza apenas como mecanismo de poder. Nenhum dos personagens parece realmente querer estar nos luxuosos apartamentos em que se encontram. Na verdade, nenhum dos Roys sabe realmente gostar de ser rico, apesar do apego vulgar aos seus excessos. Este princípio governante explica a gangorra entre a brutalidade emocional e a inépcia dos personagens que passam por um estilo de vida estéril encharcado de privilégios que os tornam intocáveis. Inclusive, notadamente, pela Covid. Embora a produção da terceira temporada tenha sido adiada devido à pandemia em curso, o conteúdo da série não foi reescrito porque, como disse Sarah Snook, que interpreta Shiv, uma das filhas de Logan Roy, “nenhuma das pessoas realmente ricas do mundo seria afetada pela pandemia”.

Acima de tudo, Succession triunfa ao se concentrar nos privilégios mais tóxicos que a riqueza pode oferecer. Para os Roys, não é sobre perpetuação sustentável de um negócio, sobre inovação da corporação numa perspectiva de médio prazo. É sobre o encobrimento de contravenções. É a sua capacidade de desumanizar qualquer um que não seja “um deles” sem pensar duas vezes (conforme encarnado no acrônimo assustador usado pela empresa para se referir a crimes envolvendo imigrantes ilegais: NRPI, também conhecido como “nenhuma pessoa real envolvida”). É a capacidade de evitar repercussões por décadas de agressões sexuais encobertas. Uma série que destaca o completo absurdo da riqueza, o vácuo moral que ela cria. É um drama sobre uma família que perdeu todo o contato não apenas com os colaboradores, mas com qualquer pessoa fora de seu próprio umbigo. Os Roys ganharam milhões transmitindo um canal de notícias que fomenta o ódio e o medo, e ainda assim sobra tempo para requintes de crueldade com a manutenção de tabloides sensacionalistas de fofocas. É assim que o poder funciona a portas fechadas. É feio e ninguém se sente seguro. O ápice desse comportamento se dá com a alegria evidente do pai que se realiza quando o filho consegue trair sua confiança. A moeda de troca nessa família é imbecil: o desvio de caráter é valorizado pelo patriarca a ponto de ser retribuído com o único sorriso que o ator performa em todos os episódios.

Será que estamos mesmo aprendendo com essa alteração de perspectiva? Porque passamos décadas no mercado de consumo de luxo, aplicando essa abordagem pueril com o público de alta renda mimetizando essa referência de gerar desejo por através das nossas ferramentas de marketing. O famoso “aspiracional”. Essa narrativa menos superficial com mais verdade e menos fantasia deveria ditar também o tom da publicidade que almeja conexão verdadeira com as pessoas. Assistindo o break e pre rolls da vida parece que temos um longo caminho pela frente…

*Crédito da foto no topo: Audioundwerbung/iStock

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