1 de março de 2019 - 16h04
(Crédito: Geralt/Pixabay)
No longínquo início do milênio, é provável que a prestigiosa revista Neuron não tivesse sido capaz de antecipar o sucesso retumbante do paper “Neural correlates of behavioral preference for culturally familiar drinks” (2004, 14, 44:379-87), que com seu famoso experimento de Coca-Cola vs. Pepsi apresentou ao o mundo uma modalidade de estudos apelidada de neuromarketing.
Parecia claro que a prática de adentrar a mente neurológica para revelar seus segredos recônditos iria se tornar rotina, numa espécie de psicanálise às avessas, em que o inconsciente desvelado abdica de seu papel de força oponente ao comportamento manifesto, afirmando-se calorosamente como proxy às preferências reveladas.
Diversos neurocientistas foram envolvidos em uma miríade de experimentos de marketing e assim é que caíram no meu colo alguns projetos verdadeiramente grandes e divertidos, como é o caso do estudo da Fiat/Fapemig, que entre outras coisas deu origem ao doutorado da atual Profa. Dra. Caissa Veloso (UFMG, 2014), que aliás acabou de finalizar seu pós-doutorado sobre o uso de estratégias de neurociências para aumentar a taxa de doação de sangue, comigo, no departamento de psiquiatria da Unifesp.
O campo vem avançando bastante, mas, do ponto de vista do mercado, a percepção geral parece-me bem menos efusiva do que se supunha. Essa é a uma constatação curiosa. Não é que as empresas tenham deixado de acreditar no potencial das inferências biológicas para revelar tendências sobre a relação com marcas e com o consumo, ou ainda que o fato de ter surgido um campo muito maior do que o original, em que profissionais que nunca publicaram nada em neurociências comunicam seus grandes segredos, tenha ofuscado a percepção de que insights experimentais são possíveis.
A minha hipótese é de que se estabeleceu um mal-estar de difícil formulação, evolvendo diferenças de pontos de vista sobre o que estes estudos mais sérios precisam entregar, o qual por sua vez oculta uma dificuldade metodológica dos empreendedores neurocientistas, que eu espero revelar para vocês neste artigo e, talvez, ajudar a sanar.
Na década de 1920, o jovem Ronald Coase deitou as bases para a compreensão do leitmotiv organizacional. Empresas mantém-se abertas na medida em que os custos de contratação no mercado superam os custos de internalização dos profissionais capazes de realizar as ações especializadas que lhe servem de diferencial. Nas antípodas deste princípio está a ideia de que qualquer contratação externa e pontual deve ter retorno esperado superior àquilo que pode ser realizado internamente. Cem anos de teoria da firma corroboram esse princípio.
Um departamento de marketing, assim como uma agência de publicidade devem maximizar o retorno esperado do investimento do cliente, seja este representado pelos sócios controladores, acionistas ou mesmo pelo departamento contratante. É extremamente difícil estimar esse retorno em relação à pesquisa de marketing – esta etapa indispensável no processo de planejamento de qualquer tipo de ação direcionada aos clientes e prospects de um produto ou marca. Porém, o combo do qual a pesquisa faz parte é determinado pela verba total do departamento de marketing ou agência, cujo ROI pode ser estimado através de modelos matemáticos de alocação eficiente conhecidos desde a década de 1970.
Neste combo, qualquer novo ingrediente naturalmente enfrenta o desafio de ter retorno imponderável. Porém, a situação torna-se mais aguda quando se trata da contratação de empresas de pesquisas neurocientíficas, uma vez que as dinâmicas tecnológicas adotadas por estas são tão desconhecidas das contratantes quanto o próprio ROI.
Arrolados em práticas cuja transparência não pode ser objetivamente apreendida pelos seus clientes, parece que o mundo do neuromarketing ainda não percebeu que precisa entregar, de maneira particularmente clara e mensurável, formulação e evidência de ROI superior às alternativas convencionais com as quais concorre. Ou então que precisa de produtos não-concorrentes, igualmente consistentes do ponto de vista financeiro.
Explico-me. Admitir que a técnica “x” é particularmente capaz de compreender o que se passa no inconsciente cerebral de uma coorte de “y” pessoas e que deste modo consegue determinar se um comercial televisivo tende ou não a ser bem recebido por representantes deste grupo não é sinônimo de se assumir que o retorno esperado da inclusão deste procedimento é superior ao da realização de uma pesquisa de marketing tradicional; do ponto de vista da psicologia do cliente corporativo, esta percepção tácita agrava-se já que as tecnologias e práticas implicadas passam ao largo do conhecimento estabelecido no setor.
O resultado é esse mal-estar que mencionei, que não é nada além da sensação de se estar exposto ao risco que cognitivamente determina-se pelo produto do desconhecimento técnico pela imponderabilidade do retorno.
Acertar estes ponteiros não é tarefa muito simples, mas certamente pode trazer benefícios para ambos os lados. No meu ponto de vista, isto deve partir do direcionamento das estratégias de neurociências para situações que não podem ser adequadamente mapeadas pelas pesquisas de marketing convencionais, já que estas são obviamente mais baratas. Em paralelo, urge desenvolver estratégias de apuração do valor financeiro gerado em função do adicional investido, ancoradas na relação com o diferencial tecnológico adotado, que deste modo irá se acomodar melhor na equação financeira que rege a alocação do budget.