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Opinião

Ativismo, mídia e sustentabilidade

The Guardian torna-se a primeira empresa de mídia do mundo a instituir uma proibição total de publicidade de companhias que figuram na lista das maiores poluidoras do mundo


22 de novembro de 2021 - 17h06

No final de outubro, poucos dias antes da realização da Conferência sobre o Clima, COP26, que terminou na sexta 12, em Glasgow, na Escócia, o jornal inglês The Guardian veio a público renovar seu compromisso pelo clima, iniciativa que teve início dois anos atrás e que agora ganhou mais envergadura.

Créditos: divulgação

No anúncio, o Guardian listou seis iniciativas para reforçar a missão de não só pressionar líderes e tomadores de decisão em prol de ações para diminuir a emergência climática, mas também no sentido de fazer do jornal exemplo ao colocar em prática o que prega. A lista é composta pelas seguintes medidas: continuidade de publicação de relatórios e reportagens especiais sobre o tema conhecidos por sua independência e qualidade; reportagens sobre como o colapso ambiental já afeta a vida das pessoas no planeta, o que inclui desastres naturais e eventos de climas extremos; publicação de indicadores globais que apontam a urgência da situação; corte imediato de emissões de carbono chegando à eliminação de dois terços até 2030; não aceitar mais anúncios de empresas de petróleo e gás; e ser transparente na divulgação do atingimento dessas metas.

De longe, a decisão de não mais aceitar publicidade de empresas que extraem combustíveis fósseis é a mais emblemática, pois demonstra como ter um propósito tem sim um preço e requer coerência. Com o anúncio, o The Guardian torna-se a primeira empresa de mídia do mundo a instituir uma proibição total de publicidade de companhias que figuram na lista das maiores poluidoras do mundo. “Nossa decisão é baseada nos esforços de décadas desse setor para impedir ações climáticas significativas por parte dos governos ao redor do mundo. A resposta ao aquecimento global é o desafio mais importante dos nossos tempos”, diz o comunicado oficial do Guardian.

Dentre as reportagens especiais encabeçadas pelo time de jornalismo investigativo do jornal está o relatório sobre como o lobby das empresas de energia prejudicou explicitamente a causa ambiental. Grupos ambientalistas afirmam que já há algum tempo essas empresas usam campanhas publicitárias como estratégia de “greenwashing” para destacar investimentos relativamente pequenos em energia renovável, enquanto continuam a fazer a grande maioria de sua receita com a extração de combustíveis fósseis.

Em 2019, o diário britânico já tinha promovido mudanças no seu Manual de Redação, passando a recomendar a seus jornalistas e articulistas que não falem mais em “aquecimento global” ou “mudança do clima”, mas sim em “crise”, “urgência” ou “colapso” do clima. Para o jornal, esses termos descrevem com mais precisão as atuais ameaças ao meio-ambiente. “A expressão ‘mudança do clima’ soa um tanto leve e passiva, mas o que os cientistas estão descrevendo é uma catástrofe para a humanidade”, afirmou na ocasião a editora-chefe Katharine Viner.

Acompanho e admiro o trabalho editorial do The Guardian há muito tempo e fiquei imaginando (ou sonhando!) se algum dia aqui no Brasil seria possível imaginar um tipo de posicionamento editorial e empresarial por parte de um grande grupo de mídia ao menos parecido com esse. Infelizmente, essa realidade é impossível por aqui por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque o diário inglês não tem “dono”.

É gerido por um fundo sem fins lucrativos de cerca de 80 anos criado com a finalidade de manter o jornal operando com independência editorial e financeira.

O segundo é que os grandes veículos de comunicação brasileiros são controlados por famílias com agenda empresarial própria de poder e influência e têm na receita publicitária sua grande fonte de financiamento. Essa dependência do mercado, de alguma forma, molda as decisões editoriais.

Um grupo de mais de 100 empresas e dez entidades setoriais brasileiras apresentaram recentemente ao mercado um documento intitulado “Empresários pelo Clima”, no qual defendem medidas para uma economia de baixo carbono e assumem responsabilidades nessa transformação. Tal posicionamento foi levado à COP26. Entre os setores representados no compromisso estão o agronegócio, alimentício, aviação, elétrico, farmacêutico, finanças, infraestrutura, logística, papel e celulose, petroquímico, saúde, tecnologia, telefonia e varejo. Das 113 empresas participantes, 52 publicam resultados financeiros, com uma receita líquida somada de R$ 1,1 trilhão em 2019.

Muitas dessas empresas têm utilizado essa “agenda verde” como mote de suas campanhas publicitárias e, têm sido visíveis, especialmente nos últimos dois anos, diversas iniciativas editoriais com foco nesses temas e com algumas dessas marcas como patrocinadoras.

Artigo no Columbia Journalism Review comemorou o fato de os principais veículos da imprensa norte-americana terem acordado para a crise do clima, com cobertura robusta nos primeiros dias da COP26. A crítica semanal do ombudsman da Folha de S. Paulo, José Henrique Mariante, publicada no domingo 4, questionava o fato de a mídia brasileira, ao contrário da norte-americana, não entrar de vez nessa briga sobre a emergência climática, no contexto da decisão do The Guardian. “Na crise atual, é difícil imaginar um veículo de imprensa no Brasil recusando comerciais da Petrobras. Mas qualquer um deles poderia debruçar-se sobre a estatal para entender o que seu plano estratégico (não) prevê diante da projetada descarbonização da economia mundial ou sobre tantas reservas em seu poder que vão se tornar ociosas”, disse.

E completa: “Agronegócio, metano, terras indígenas, garimpo ilegal, obsolescência da indústria nacional, SUVs, consumo exagerado. Sobram pautas, faltam braços, mas faltam iniciativas também”.

Embora bem distante da realidade da mídia brasileira, o ativismo do The Guardian e a postura crítica da imprensa norte-americana na cobertura da COP26 são exemplos inspiradores e evidenciam a necessidade de posicionamento por parte dos veículos em temas caros à sociedade, como a questão da emergência climática. Afinal, a linha é cada vez mais tênue ou até mesmo inexistente entre assumir causas, ser sustentável e manter a relevância.

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