Opinião

Colaboração e propósito vencem quando a IA reescreve as regras

Reflexões do SXSW Sydney 2025 sobre o paradoxo que define nossa época: a tecnologia torna tudo mais fácil, exceto trabalhar juntos

Guil Salles

Fundador e CEO da Oito 29 de outubro de 2025 - 14h14

Existe um momento específico em que você percebe que está testemunhando não uma mudança gradual, mas uma ruptura estrutural. Para mim, foi quando ouvi de sir Martin Sorrell, fundador e ex-CEO do grupo WPP Global, que um comercial que antes custava US$ 2,5 milhões pode agora ser produzido por US$ 500 mil e em um quarto do tempo com recursos de IA.

A promessa de eficiência radical dos modelos de linguagem generativos já é uma realidade. Mas enquanto eu processava esse dado, outro me atingiu com uma força oposta: uma pesquisa mostrou que 70% das pessoas não ajudariam alguém com visão política diferente da delas. O paradoxo não poderia ser mais brutal: a IA democratiza o conhecimento ao mesmo tempo em que nos tornamos mais isolados e incapazes de colaborar.

Passei a semana em Sydney tentando entender esse paradoxo. Por que hierarquias baseadas em “eu sei, você não sabe” estão morrendo (afinal a IA democratizou o conhecimento; nos dias de hoje ninguém mais controla informação), mas nossa capacidade de trabalhar juntos está em colapso? A resposta a que cheguei não é muito agradável: estamos buscando uma otimização para a eficiência individual em uma época em que o foco deveria estar em uma colaboração “radical”. Estamos treinando profissionais para usar IA e ganhar produtividade, mas não estamos preparando ninguém para navegar a complexidade que é construir algo significativo com outros — como nós, humanos, imperfeitos.

O que mais me incomodou foi descobrir que a IA está criando uma geração inteira do que chamaram de vipers – profissionais que entregam trabalhos polidos, mas não sabem responder a perguntas técnicas básicas. E aqui está o problema sistêmico que ninguém quer admitir: se eliminarmos todos os cargos júniores (70% dos CEOs australianos acreditam que isso vai acontecer), de onde virão os profissionais seniores?

Não é sobre preservar empregos por nostalgia, é sobre entender que experiência não se baixa como uma atualização do sistema operacional do seu celular.

Mas a provocação mais incômoda veio de outro ângulo: em um mundo onde 275 interrupções diárias destroem qualquer possibilidade de atenção profunda, onde comerciais baratearam a um quinto do custo anterior e agora demandam um quarto do tempo anterior para serem produzidos, onde algoritmos substituirão entre 200 mil e 250 mil pessoas só em media planning – qual é o trabalho que resta para humanos?

A resposta é o “trabalho que exigir sermos profundamente e vulneravelmente humanos”. Construir confiança, colaboração e criar significado coletivo.

O conceito que carrego de Sydney é o de grounded leader. Na prática, significa parar de fingir que temos respostas para tudo. Significa filtrar o que importa em meio ao tsunami de informação que recebemos diariamente. Significa falar como gente normal, não como um robô corporativo recitando jargões a torto e à direita. Significa criar um ambiente onde as pessoas não tenham medo de errar, porque o erro é parte da inovação. E significa estar disposto a testar coisas novas constantemente, porque o que funcionou até aqui já não funciona mais.

A década da desorientação não é sobre IA substituir humanos. É sobre estruturas que funcionaram por décadas virando obsoletas em meses. É sobre descobrir que a eficiência individual não resolve a complexidade do todo.

Voltei de Sydney com uma convicção: IA reescreveu as regras, mas a pergunta relevante não é “o que IA faz melhor que humanos?” A pergunta relevante é “o que só humanos com os humanos fazem?” E a resposta não está em competir com máquinas em eficiência. Está em construir o que máquinas não constroem: confiança, colaboração e significado.

Como o que foi dito por aqui sobre resolver a crise do ozônio e o apartheid: não há como resolver problemas atuais sem aprender a colaborar em escala que nem conseguimos imaginar. Na década da desorientação nos será exigida uma escolha: jogar sozinho otimizando eficiência individual, ou jogar junto construindo capacidade coletiva que nenhuma IA replica. Minha aposta é que quem escolher jogar sozinho não sobreviverá à próxima década.