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Opinião

Criação de novos imaginários e de novas demandas

E, claro, aqui, também envolve o papel da nossa indústria, e de cada um de nós, nessa mudança para a construção de uma mentalidade que fuja do ciclo predatório de criação de demanda para uma nova forma de consumo


22 de fevereiro de 2023 - 6h00

(Crédito: Luckyvector/istock)

Acho obsceno reduzir a floresta a um ativo econômico. A gente não pode cair no erro de transformar um bem humano em um bem material, substituir a beleza e o milagre da floresta por um preço. Acho que preservar a maior floresta tropical do mundo é, antes de tudo, um dever de civilização. Independentemente de ter ou não preço, a Amazônia tem valor porque lá vivem coisas. Não são só pessoas humanas; são plantas, animais, fungos, microorganismos. Tudo isso tem o direito de continuar a existir, e é nosso dever preservar. Se a gente não conseguir defender a Amazônia, a gente vai estar diante de um desastre moral

João Moreira Salles -documentarista e escritor

Desde o dia 21 de janeiro, nós brasileiros, em particular, e o mundo, no geral, temos sido impactados pelas imagens fortes e chocantes dos yanomamis em estado severo de desnutrição e malária, na região de Roraima. A partir daí há uma mobilização tanto por parte do governo federal como da sociedade civil, em especial a partir de campanhas criadas pela Ação da Cidadania e Central Única das Favelas (Cufa) de doação para ajudar no enfrentamento à situação de emergência sanitária dos povos que vivem na Terra Indígena Yanomami em busca de redução de danos.

Uma das minhas leituras mais impactantes durante o período mais recluso da pandemia foi o livro A queda do Céu, (2015, Companhia das Letras), de autoria do xamã yanomami Davi Kopenawa e do etnólogo francês Bruce Albert. Nele, por meio de saberes cosmológicos e visões xamânicas, Kopenawa denuncia as mazelas vividas por seu povo sob a égide do discurso desenvolvimentista, e realiza uma profunda reflexão a respeito da tragédia que representou o contato entre os yanomami e os brancos. Suas palavras relatam, desde a violenta imposição religiosa praticada pelos missionários da New Tribes Mission até a mortandade provocada pelas obras da rodovia Perimetral Norte, durante a ditadura militar brasileira, assim como pela invasão garimpeira do território yanomami a partir da década de 1980.

O mundo como conhecemos na atualidade foi construído à base da usurpação e exploração impetradas durante a colonização da América e, nesse sentido, a narrativa de Kopenawa evidencia que o modelo de sociedade oriundo desse processo caminha rumo à destruição. Em contraposição à lógica colonialista de uso predatório da terra e dos recursos naturais, as vozes indígenas têm feito reiterados alertas quanto à necessidade de mudanças urgentes na forma como nos relacionamos com o planeta. Por isso, A queda do céu configura-se como importante manifesto em prol da preservação da floresta e dos seres que nela habitam, bem como da continuidade da existência humana nesse mundo.

Acabei de ler agora nesse início de ano Arrabalde (2022, Companhia das Letras), de João Moreira Salles. O título expressa a ideia de que o país despreza o bioma e o trata como periferia ou resto e é resultado de uma temporada de Moreira Salles de seis meses no Pará, na qual pode examinar e vivenciar diferentes aspectos da realidade da Amazônia. O modelo predatório de colonização, os megaprojetos que fracassaram e a inteligência ecológica dos povos originários são algumas das questões discutidas no livro. Em entrevista ao podcast Ilustríssima Conversa, da Folha de São Paulo, ao comentar o livro, Moreira Salles declara que a forma como a Amazônia povoa o imaginário brasileiro contribuiu para a situação atual, perpetrada ao longo do último meio século.

“Quando eu cheguei, aqui não tinha nada.” Essa é a frase mais ouvida pelo documentarista pelos diversos colonos que encontrou no Pará, o que mostra, para ele, como a ocupação da Amazônia por forasteiros aconteceu contra a floresta. “Esse nada —as paisagens monumentais, a vida extremamente complexa e diversa— precisava ser preenchido por uma ordem já conhecida, adestrada e cartesiana, como os pastos e a monocultura de soja”.
Para Moreira Salles o país nunca incorporou a Amazônia ao seu imaginário nacional. Para ele, o agronegócio não é só uma atividade econômica, mas um modo de estar no mundo de boa parte da população da região. Vazia de floresta, a cultura hegemônica da Amazônia tem como pilares, hoje, o boi, as picapes 4×4 e a música sertaneja, o que cria, em sua avaliação, um entrave imenso à preservação do bioma.

É exatamente a fala sobre a relação entre Amazônia e o imaginário nacional que me chama a atenção. Que histórias são contadas e principalmente, mostradas, sobre a essa riquíssima região do planeta que o Brasil tem o privilégio de sediar boa parte e que chegam até nosso imaginário? E nesse ponto, como indústria que move a economia e que utiliza para isso a criação de narrativas, existe uma oportunidade de igual proporção ao seu tamanho. É hora de usar o talento dos criadores de histórias, ficcionistas e documentaristas para se produzir novas narrativas sobre a Amazônia. A publicidade e o audiovisual, agora turbinado pelos vários canais de streaming, têm diante de si uma oportunidade de (re)contar essa história. Nosso imaginário precisa ser povoado por outras referências semânticas sobre a Amazônia, semelhante ao que começa a ser construído sobre pessoas trans e sobre a favela.

No caso específico da Amazônia, há a necessidade de políticas públicas e vontade política de mudar essa realidade para a criação de uma matriz econômica e enérgica que possa transformar o Brasil em um país que saia do extrativismo medieval responsável por nossa colonização desde a chegada dos europeus por aqui.

E, claro, aqui, também envolve o papel da nossa indústria, e de cada um de nós, nessa mudança para a construção de uma mentalidade que fuja do ciclo predatório de criação de demanda para uma nova forma de consumo: consciente e que leve em conta seu impacto na cadeia de suprimentos e no uso de recursos naturais pela indústria e a própria sociedade.

Como disse a consultora Kate Ancketill na NRF 2023 (https://bit.ly/3YCio43), precisamos nos preparar para o fim da abundância. A afirmação é fundamentanda pela sua projeção em cima do fato de que simplesmente não temos os recursos naturais nem para continuar consumindo na mesma escala de hoje, nem para promover a transformação da matriz energética na velocidade necessária a fim de cumprir objetivos previstos dentro de acordos climáticos globais.
Cabe a cada um de nós nos mobilizarmos individual e, coletivamente como indústria, em prol dessa que é a grande agenda desta década com as metas nacionais de redução de gases de efeito estufa (NDC, na sigla em inglês) até 2030. Como somos mobilizados pelo afeto, que as fortes imagens das crianças yanomamis desnutridas sejam a chama para ir além do choque, provocando uma profunda reflexão, nos levando a um plano de ações e à construção de uma nova agenda: mais sustentável, menos predatória e com menos excesso.

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