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Opinião

Estique-se

Há toda uma crença de que devemos ser rígidos, fortes, duros para conquistar resultados, mas o que a gente descobre é que as nossas certezas mais inflexíveis são desconstruídas com o tempo


12 de fevereiro de 2024 - 6h00

O vendedor ambulante caminhava pelas areias quentes de Copacabana carregando duas hastes de madeira ou cabos de vassoura improvisados. Dessas hastes, os mais diversos penduricalhos sacudiam, mais pelo seu andar do que pelo quase inexistente vento. As crianças miravam aquelas bolas Dente de Leite a balançar, os baldinhos, as pás, as mais variadas bugigangas coloridas. Tudo a reluzir ao sol. Já os adolescentes e os adultos guardavam uma estranha fascinação por água oxigenada e Blondor, para descolorir os pelos do corpo, e por uns pequenos saquinhos de plástico, com um formato de travesseiro, recheados de um líquido que até parecia doce de leite, mas era um bronzeador de origem inexplicada, melhor, desconhecida. Ao lado deles, podia-se vislumbrar um Rayito de Sol, o suprassumo do bronzeamento daquela época, mas nem sempre acessível. Os adultos frequentemente usavam o travesseirinho de bronzeador. Minha mãe usava. O cheiro de bronzeador é uma das lembranças que guardo em minha memória bem ao lado do cheiro de chuva no asfalto e do cheiro de gasolina – que entrava por todo o carro – no posto de combustível.

Nos anos 80, havia ainda uma grande obsessão pelo bronzeamento, sem qualquer menção ao uso de filtro solar. A barreira física que os surfistas usavam era Hipoglós mesmo. Quando usavam, é claro. Havia uma imensa fileira de gente torrando ao sol quase que inocentemente. E as fórmulas caseiras se espalhavam pela areia sem grandes questionamentos. Alguém dizia: usa óleo caseiro de urucum. E pá, a pessoa usava. Era comum o uso de Coca-Cola, manteiga, misturebas mil. Um amigo teve uma queimadura de sei lá qual grau pelo uso de óleo de avião em busca da torra perfeita. Ao menos era o que se dizia na praia. Mas filtro solar era palavra rara e quando o Sundown chegou, houve quem dissesse que era bobagem. Estilo quando começaram com a exigência de cinto de segurança no Brasil. De modo que, quando o texto da Mary Schmich chamado “Use filtro solar” ganhou a internet sendo atribuído ao Kurt Vonnegut ou até mesmo ao Pedro Bial (que deu voz à versão em português), o estrago na minha pele já estava feito. Palavras da primeira dermatologista que fui em São Paulo.

Pequeno corte para contar esse episódio da dermatologista. Entro no consultório dela para ver alguma coisa no rosto. Uma mancha ou algo do gênero. Qual não foi a minha surpresa quando ela pediu para eu ficar de cueca. Eu reforcei: mas é no rosto. Ela me respondeu: eu ouvi o seu sotaque carioca e sei que você deve ter ficado muito exposto ao sol. Desde então, lá se foram algumas pintas suspeitas retiradas até da sola do pé, o começo do uso de filtro solar 60 e do bloqueador solar com barreira física.

Falo disso tudo porque revisitei o texto em questão e ele tem coisas premonitórias em relação ao que iríamos vivenciar na sequência dos anos. E como mencionei que o filtro solar veio tarde para mim, cito uma outra palavra que ali reside. Lá pelo meio do texto, há um comando que só me foi importante quando a lombar já doía: estique-se. Portanto, na minha atualização e audácia mental, mudaria um pouco a formulação: “Se eu pudesse dar só uma dica sobre o futuro, seria esta: use filtro solar. E se eu pudesse dar duas, diria também: estique-se.”

Do ponto de vista mais banal ou tragicômico, se você nunca teve uma travada gostosa nas costas, você não pode imaginar a vergonha solitária que é ter uma cueca no chão, encaixar os pés e ficar rezando para ela subir por livre e espontânea vontade. Ou decidir ir trabalhar sem meia porque lhe foi impossível o ato. E começar a optar por tênis sem cadarço por motivos que você já consegue imaginar. Quando eu era moleque, ninguém falava para valer de alongamento. “Você tem que comer para crescer”. “Pratique esportes”. “Fique forte”. Alongamento era aquele pequeno asterisco no final do contrato dessas frases. E o chão era um lugar muito distante da palma da mão. Com muita sorte, uma ponta de dedo ralava no asfalto. Foi preciso a dor para descobrir que eu tenho que me alongar. E alongar, curiosamente, dói antes de nos fazer relaxar.

Do ponto de vista da filosofia “minutos de sabedoria”, há toda uma crença de que devemos ser rígidos, fortes, duros para conquistar resultados. É muito comum ouvir a frase “nunca me arrependo de nada”. E o que a gente descobre em algum momento é que as nossas certezas mais inflexíveis são desconstruídas com o tempo, como se ocorresse uma erosão imposta pelos fatos da vida. Bom, isso para quem se permite o autoquestionamento com a prepotência que impõe aos outros. O impávido e tranquilo Bruce Lee dizia a seguinte frase: “Observe que a árvore mais dura é mais facilmente rachada, enquanto o bambu ou salgueiro sobrevivem dobrando-se com o vento”. Falei que eram minutos de sabedoria neste parágrafo. Flexibilidade é, também, poder se livrar das certezas que perderam o sentido. Esticar quem você pode ser para além daquilo que você já foi. Ou não quer ser mais. Dói, também.

Do ponto de vista das metáforas para tempos atuais, gente encurtada de pensamento cansa a alma. Porque sem alongamento os argumentos não saem do raso, não tocam em nada que importe. Gente encurtada de pensamento só anda entre os seus, não escuta nada que venha de fora, vende o temor como forma de proteção. Alguns, mais habilidosos, criam até formas de ganhar dinheiro com suas fórmulas “coachinianas” que simplificam tudo a alguns passos. Desencurtar dói e a maioria prefere o conforto de não ter que confrontar a si próprio ou aos que o cercam.

Talvez alguém tenha me falado de alongamento e eu não tenha dado importância ao longo do tempo. Foi preciso uma cueca me dizer isso do chão. Ela, ali, inalcançável. Uma simples roupa íntima a me lembrar da patetice de um sujeito com a mobilidade de um tronco de massaranduba e a dizer repetidamente: estique-se de todas as formas. Vai doer. E sobre essa dor, fecho com um trecho de um texto do Jonathan Franzen. Coisa de uns doze anos atrás: “Quando levamos em conta a alternativa — um sonho anestesiado de autossuficiência, incentivado pela tecnologia —, a dor emerge como produto natural e indicador natural de que estamos vivos num mundo resistente. Passar pela vida e não sofrer é não viver.”

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