Li e não concordo
A lei forçará as empresas a serem mais eficazes na estratégia digital, com um impacto positivo entre uma marca ou serviço e seus clientes
A lei forçará as empresas a serem mais eficazes na estratégia digital, com um impacto positivo entre uma marca ou serviço e seus clientes
De duas semanas para cá, o feed de notícias de nossas redes sociais lembrou muito aqueles bailes elegantes para a terceira idade. Chamado de FaceApp, o aplicativo não inova, mas surpreende naquilo que se propõe: transforma a foto de qualquer usuário em uma versão dele mais velha.
Temos que admitir que a projeção feita pelo aplicativo, por meio de Inteligência Artificial, sobre como seremos daqui a 40 ou 50 anos, é impressionante, embora não inovadora. Atualmente, o FaceApp é o aplicativo mais baixado no mundo, com mais de 50 milhões de downloads na Apple Store e no Google Play. Espanta também o número de avaliações do app, de 1,5 milhão de reviews.
Divertido é. Mas o que podemos ver por detrás desse frisson é a captura desenfreada de nossos dados mais íntimos e particulares, com nossa própria autorização. A empresa russa Wireless Lab, criadora do app, obtém informações sobre os usuários e constrói uma gigantesca base de dados que inclui desde uma simples geolocalização, passando pelo e-mail, informações do telefone até preferências de consumo.
O cerne de todo o debate está na cessão consciente de dados, mas na qual nós mal sabemos o que estamos aceitando. Universidades americanas já testaram esse comportamento.
Pesquisadores de Berkley e Dresden realizaram uma pesquisa com mais de 80 mil usuários. Em um serviço de proxy anônimo, eles inseriram um aviso de cerca de 200 palavras, em inglês e alemão, convidando o usuário a participar de uma pesquisa sobre anonimato na internet. O texto era curto e dispensava até mesmo barra de rolagens. Mais de 50% dos 81.920 usuários fecharam a janela em menos de oito segundos, o que demonstra claramente que eles não leram o texto todo. Em 2005, Doug Heckman resolveu ler o contrato de um serviço adquirido pela empresa software PC Pitstop e encontrou uma nota curiosa no meio de suas cláusulas, afirmando que um número limitado de pessoas que lesse o documento e entrasse em contato com a PC Pitstop receberia um prêmio. Doug assim fez, e recebeu 1.000 dólares. O incrível é que foram necessários três mil cadastros feitos em cinco meses até alguém perceber a brincadeira. Outro caso inusitado foi o da loja de jogos GameStation, que, em 2010, fez uma experiência similar e inseriu uma cláusula que fazia o usuário ceder os direitos da própria alma à empresa. O impressionante é que sete mil pessoas entregaram suas almas à GameStation.
Portanto, os termos de condições de apps e softwares são contratos no qual se pode pedir praticamente tudo. Na política de privacidade, os criadores do FaceApp especificam que os usuários, ao fazerem download do app, “concordam em fornecer diretamente fotografias e outros materiais publicados por meio da aplicação”, inclusive histórico de navegação. Segundo eles, os dados são usados em “ferramentas de análise de terceiros para ajudar a medir o tráfego e as tendências de uso do serviço.
Estas ferramentas reúnem informação enviada pelo seu dispositivo ou pelo nosso serviço, incluindo as páginas web que visita, add-ons, e outra informação que nos ajude a melhorar o serviço”. O termo ainda completa: “quando você usa nosso serviço, nossos servidores registram automaticamente determinadas informações do arquivo de registro, incluindo sua solicitação da web, endereço IP, tipo de navegador, páginas de referência / saída e URLs”.
Os desenvolvedores rechaçam que poderão ser usados cookies e “tecnologias semelhantes” para recolher informação sobre os usuários e, assim, gerar publicidade mais assertiva. Segundo o termo, o FaceApp pode compartilhar seus dados, informações de ferramentas como cookies, arquivos de log e identificadores de dispositivos e dados de localização, com organizações terceirizadas. Assim, os prestadores de serviço da aplicação têm acesso às suas informações “conforme seja necessário para fornecer o serviço sob termos de confidencialidade razoáveis”. A política de privacidade não informa como esses dados são transferidos a terceiros, qual o momento da transferência ou o que eles entendem por conexão entre usuário e app.
Segundo o FaceApp, as informações dos usuários são armazenadas em servidores nos EUA, onde não há uma regulamentação voltada à proteção de dados, como há no Brasil (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD). Ao menos inicialmente, essa lei pode vir a garantir uma segurança aqui.
Diante disso, desenvolvedores de aplicativos e parceiros de negócios, juntamente com agências de propaganda, precisam implantar uma política clara de compliance nesta área. Como as informações sobre o público são levantadas? Como serão as relações com ferramentas de social listening, Big Data, etc? Acabamos de sair de um contexto global no qual vimos a Cambridge Analytica manipular dados de redes sociais no contexto das eleições estadunidenses. Os dados pertencem às pessoas. Em uma visão sumarista, as empresas pegam “emprestado” esses dados.
É preciso entender que esse cenário veio para ficar. Antes da LGPD, existiam cerca de 140 normas, portarias, despachos e outros instrumentos jurídicos que regulamentavam a coleta de dados de usuários. Agora, isso tudo está unificado na lei.
Essa lei forçará as empresas a serem mais eficazes na estratégia digital, com um impacto positivo entre uma marca ou serviço e seus clientes. Teremos consumidores que escolherão, de fato, receber aquele tipo de informação. Com mais clareza nessa coleta de dados, a experiência entre o cliente e seus usuários tende a ser mais verdadeira e forte. Assim, conseguiremos gerar um conteúdo mais relevante para esse público. De certo modo, a criação dessa lei não veio para burocratizar, mas para auxiliar na construção de um setor mais transparente, no qual, a médio prazo, serão produzidas campanhas mais assertivas. Quem ficar de fora dessa discussão, corre o sério risco de perder novos negócios.
A corrida pelos dados dos usuários já começou há tempos. Não é ruim esse cenário. Ao contrário, é positivo quando usamos essas informações para anteceder uma demanda necessária ou para facilitar tarefas recorrentes. Basta ter em mente que o usuário precisa ter a chave da sua privacidade e, sobretudo, possuir a autonomia de quando quer abrir ou fechá-la.
*Crédito da foto no topo: NickyLloyd-iStock
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