Opinião

O cliente não compra produtos, compra desejos

As principais lições da NRF Paris para o varejo brasileiro

Vanessa Sandrini

Fundadora da VaS Continuum 24 de setembro de 2025 - 6h00

Estar em Paris agora em setembro para acompanhar a NRF Europe é ter a sensação de que o varejo europeu se tornou um grande laboratório do futuro. O evento deixa ainda mais claro que o setor não é mais sobre abrir a porta e esperar o cliente entrar.

O slogan é Retail Together (em tradução livre, “Varejo Conjunto”), ou seja, a ideia central é que o varejo hoje não pode mais ser pensado como uma operação isolada, com cada empresa, loja ou canal por si só.

O conceito defende que o setor precisa atuar de forma colaborativa e integrada, reunindo marcas, fornecedores, parceiros de tecnologia, marketplaces, comunidades e até concorrentes para criar valor junto ao consumidor.

A seguir, compartilho os principais aprendizados e reflexões que levei das sessões e painéis — insights que dialogam diretamente com os desafios e oportunidades do varejo brasileiro.

Comunidade como motor de propósito

O case da Snipes com o Paris Saint-Germain mostra que patrocínio não é sobre logotipos na camisa, mas sobre relevância cultural. A marca de streetwear vem se consolidando como referência global a partir de um modelo “hiperlocal para global”. Apoia estúdios de música e dança nos bairros de Paris, fomenta projetos sociais e só depois amplia a narrativa ao mundo.

Como disse o CEO Dennis Schröder, parcerias só fazem sentido quando partem da comunidade. Para executivos brasileiros, fica o recado: associar-se a causas culturais exige autenticidade — sem ela, não há identidade que resista.

Pagamentos invisíveis, experiências sem fricção

Na sessão da On com a Adyen, ficou claro que o checkout tradicional está com os dias contados. Terminais móveis superaram os fixos e o Tap to Pay (toque e pague) no iPhone cresceu mais de 700% apenas no primeiro semestre.

O modelo da On — vendedores que são consultores, com dispositivos que integram estoque, venda e pagamento — mostra que o pagamento deve ser tão natural quanto a conversa. E mais: a inteligência artificial começa a operar nos bastidores, roteando transações de forma mais barata e segura, sem aumentar a fricção.

O desafio para o varejo brasileiro é encarar o pagamento não como fim da jornada, mas como parte da experiência.

IA pragmática e cadeia de suprimentos

Na entrevista com a Best Buy, a expressão “IA adolescente” chamou atenção. Trata-se de um gêmeo digital da rede logística que já toma decisões autônomas, mas com guardrails humanos.

Essa combinação ajuda a reduzir estoques, acelerar entregas e manter a cultura de serviço — do Geek Squad ao atendimento consultivo. Mais que um discurso futurista, é uma aplicação pragmática da IA. E a parceria com a IKEA, unindo tecnologia e mobiliário no atendimento doméstico, mostrou como a colaboração entre setores cria novos modelos de valor.

Marketplaces como ecossistemas

Se antes eram apenas catálogos digitais, os marketplaces hoje se tornaram ecossistemas complexos. Galeries Lafayette curando marcas com IA e expandindo vendas internacionais; Kingfisher PLC usando lojas físicas como hubs de e-commerce; Coca-Cola HBC operando uma plataforma que reúne concorrentes e otimiza toda a cadeia B2B.

O recado é claro: sem governança, dados e mídia de varejo integrados, não há ecossistema sustentável.

Da venda de produtos à entrega de desejos

O painel da MediaMarktSaturn sintetizou a mudança: a pergunta estratégica não é mais “como vender produtos?”, mas “quais desejos o cliente quer realizar?”.

O reposicionamento como plataforma de serviços — com soluções de financiamento, reciclagem, sustentabilidade e até entretenimento nas lojas — aponta para margens maiores e fidelização real. Ao mesmo tempo, reforça que tecnologia e IA são meios, não fins: o diferencial continua sendo humano.

Dados e lojas físicas: a combinação possível

O painel com Bain, Carrefour e VusionGroup reforçou a resiliência da loja física. Pesquisas mostram que 75% dos líderes querem transformá-la em hub omnichannel e que a digitalização pode adicionar até 1,5 ponto percentual na margem em três anos.

Do autoatendimento inteligente à realidade aumentada, a loja se torna laboratório de dados e ponto de consultoria. Mais uma vez, a tecnologia potencializa, mas quem transforma é o colaborador.

Quatro diretrizes para competir hoje

Do hiperlocal da Snipes ao global da Coca-Cola HBC, das transações invisíveis da Adyen à “IA adolescente” da Best Buy, o aprendizado converge em quatro eixos: comunidade e cultura, tecnologia invisível, orquestração inteligente da cadeia e experiência total. Não se trata mais de tendências distantes, mas de diretrizes operacionais.

No varejo atual, o cliente tem zero paciência, vive no smartphone e espera experiências memoráveis em cada contato. Para as marcas, resta a escolha: continuar medindo o sucesso pelo número de caixas abertas ou assumir que o futuro está em abrir experiências.