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Para quando a nave de IA chegar

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Opinião

Para quando a nave de IA chegar

Uma das responsáveis pela existência da literatura e da historiografia, é natural que a fofoca também tenha chegado aos tempos atuais e, em nosso mercado, com a mania de explorar medos em versões apocalípticas


10 de junho de 2024 - 6h00

Você já deve ter ouvido aquela máxima que diz que se alguém se sentar à mesa para falar bem de uma pessoa, o assunto dura três minutos. Mas se for para falar mal, a conversa corre o risco de durar duas horas. É a fofoca, o desafogo, o futrico, o mexerico, o babado, a difamação. Heródoto, considerado o primeiro grande historiador, era também um fofoqueiro de mão cheia, porque expunha a vida privada do poder. Ou seja: fofoca e história estão ligadas desde o seu fundamento. Como explica Nelson Ascher em um artigo: “A fofoca, além de ter uma trajetória respeitável, é uma das responsáveis pela existência da literatura e da historiografia, além da biografia, que é a fofoca respeitável”. O mesmo Nelson cita a Divina Comédia como uma obra em que seu autor, Dante Alighieri, jogou seus conhecidos entre o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, contando os motivos pelos quais eles foram parar ali. Fofoca de vizinhança com requinte da mais alta patente da literatura.

Retorno para a mesa do bar. Vamos imaginar aquela balbúrdia de pessoas do mercado, uma boa parte de camiseta preta, outra com vestimenta mais ousada. De repente, chega aquele momento do “quem foi para onde?” ou “lembra de tal lugar que trabalhamos juntos?”. Inevitavelmente, haverá o momento das crônicas das mazelas anunciadas, que é uma catarse de “a agência x tá mal”, “a agência y vai acabar”, “o grupo vai fundir todas essas aqui”, “tomara que feche mesmo”.
Há tempos isso me causa uma estranheza, mas foi no SXSW que consegui chegar a uma espécie de definição sobre esse rito que, em certa medida, eu já fui cooptado ou cooptei alguém para participar. O mercado da comunicação tem um anseio pelo próprio fim. Há uma atração com vestimenta apocalíptica, um desejo de ser como o ciclope de um antigo filme chamado Krull, sobre um ser fantástico que tinha o doloroso dom de enxergar o dia da sua morte. O único futuro que o coitado previa era o seu epílogo.

Esse anseio é cíclico. Foi assim quando as denominadas agências digitais surgiram: acabou, babou, escafedeu-se tudo. Quando as consultorias chegaram, o discurso não mudou. O mercado vê a casca de banana na calçada e já solta: certeza que nós vamos escorregar, bater a cabeça no chão e adeus. É óbvio que não seria diferente com o assunto IA. Só que as camadas de terror agora são mais profundas e com um horizonte bem estreito e coberto de neblina sobre os próximos passos. Escrevi no último artigo e reforço: ninguém, nem o mais guru dos gurus pode detalhar com exatidão os anos à frente. Então, surgem as teorias do fim que, no seu âmago, disfarçam um sentimento sobre o temido novo lugar. Porque o desconhecido nos assombra de alguma maneira.

Quando alguém solta a teoria do apocalipse, podemos olhar sob duas perspectivas: essa pessoa provavelmente vai vender um serviço que será a tábua de salvação para todos os males que poderemos sofrer ou ela tentará dar cabo da angústia de vivenciar esse medo, dando-se por convencida. É, acabou mesmo, já era, bem que eu sabia. E, assim, ela tenta minimizar o próprio sofrimento. Sabe aquele amigo que adora prever a chuva no fim de semana porque acredita que ao fazer isso, se o sol aparecer, é um lucro? Pois é! É um mecanismo similar ao da motoquinha de um desenho animado (direto do túnel do tempo) que repetia “eu te disse, eu te disse” quando algo dava errado.

No mercado da comunicação, a perspectiva mais constante é o combo da tábua de salvação com discurso de temor. Uma espécie de McLanche Infeliz das técnicas de venda. Sem brinde, sem lanche, mas com uma dose caprichada de temor.

Recorro ao filósofo Clóvis de Barros Filho, que disse estas palavras em uma palestra: “O guru fala línguas que você acha estranhas. O guru tem sempre a verdade sobre a vida. O guru tem a chave que funciona para qualquer um, seja você quem for. ‘Aplicou, deu certo’. O grande segredo do guru é dar a palestra e cair fora rápido”.

Recorro também ao amigo Cris Dias, que cito pela segunda vez seguida: “Eu nunca vou ficar rico com palestra de inovação, porque não uso a ferramenta mais fundamental deste mercado: o medo. No caso, se você não seguir o que estou falando, vai ser deixado para trás, ultrapassado, sem emprego, falido.”

O medo espalha rápido, é um discurso poderoso. Em 1938, Orson Welles fingiu estar transmitindo uma invasão de extraterrestres pela rádio e criou um fuzuê danado nos Estados Unidos. Imagina poder trabalhar o pavor com todas as ferramentas disponíveis nos dias de hoje. E em formatos curtos, para dar aquela engajada gostosa. Pois bem, não tem ciclope de Krull que dê conta.

Por isso, gostaria de deixar claro, que na iminência de uma nave criada e movida por IA sobrevoar as nossas cabeças com um canhão laser apontado para o solo, eu vislumbro uma multidão de pessoas que estarão nas lajes dos prédios das agências, consultorias e afins. Umas com cartazes escritos às pressas com mensagens de efeito tal como: “me levem daqui”, “o fim está mais próximo”, “eu te disse”. Outras, mais preparadas, estarão com uma apresentação em keynote, e no primeiro slide poderemos ler “o que eu aprendi quando tudo estava prestes a acabar”. Talvez alguém coloque aquela canção do fim do mundo, cantada pelo R.E.M, para tocar alto. Eu vou ficar no grupo (que espero que seja grande) do cartaz feito com duas folhas A4 da impressora, um OOH de duas faces analógicas. Na primeira folha estará escrito: eu tô de boa. Na segunda: eles é que queriam o fim de tudo.

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