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A transformação de Amora Mautner nas novelas da Globo

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A transformação de Amora Mautner nas novelas da Globo

Há mais de 25 anos na emissora, a diretora artística do remake "Elas por Elas", no ar desde setembro, reflete sobre sua trajetória de privilégios, desafios e sucesso


27 de novembro de 2023 - 7h19

Amora Mautner é diretora artística na Globo e está à frente do remake da novela “Elas por Elas”, no ar desde setembro (Crédito: Divulgação/Marcus Sabah)

Amora fala rápido, como quem não quer deixar os pensamentos escaparem. Quando conversa, é intensa nas palavras e no raciocínio. Faz piada de si mesma o tempo todo, consciente de que está em constante transformação e nem sempre as coisas dão certo quando se arrisca. Esse apego à mudança contínua é coisa séria na vida dela. No momento, está estudando o estoicismo dos gregos antigos, tentando colocá-lo em prática em casa e no trabalho.  

No caso, o trabalho é na Globo, onde ela está à frente da direção de novelas há mais de 20 anos. “Eu acredito muito na transformação o tempo todo. Quando deito na cama, fico pensando no que eu posso me transformar, onde não fiz o que imaginava ser o melhor. Minha meta é conseguir gastar energia apenas com as três coisas que podemos controlar na vida: nossos valores, nossas atitudes e nossos pensamentos. O resto é gerado pelo acaso.”  

O acaso parece ter sido generoso com Amora. Os sucessos “O Cravo e a Rosa”, “Celebridade”, “Avenida Brasil” e “Joia Rara”– que conquistou o Emmy Internacional em 2014 — são algumas das obras que capitaneou. Agora, com o remake “Elas por Elas”, a diretora de núcleo inicia uma parceria com os autores Thereza Falcão e Alessandro Marson, com quem diz aprender muito sobre a importância da diversidade nas produções.  

“O Alê e a Tereza estão fazendo uma releitura linda. Tem o DNA do autor Cassiano Gabus Mendes, mas eles estão atualizando as tramas. Tudo mudou. Os autores escreveram personagens diversos, por isso temos uma novela muito diversa. A diversidade tem de ser cada vez mais um dos nossos maiores valores. E o bom é poder tentar outras coisas, que às vezes dão certo, outras não. Essa é a nossa vida.”  

Da valorização da diversidade aos gregos antigos, o interesse de Amora pela filosofia não apareceu à toa. Filha do cantor e escritor carioca Jorge Mautner e da historiadora e etimóloga Ruth Mendes, ela cresceu em um núcleo muito cultural, onde ler Nietzsche aos oito anos de idade era um programa comum. “Eu tinha noções muito intensas até para uma criança”, reflete.  

Mas essa formação existencial não se resumiu apenas à sua família biológica. Sua infância e juventude foram ao lado de filhos de pais parecidos com os dela, com o tropicalismo como pano de fundo. Ela e Preta Gil eram “melhores amigas desde sempre”, como lembra. Moreno Veloso, filho de Caetano Veloso, era como um irmão. “A gente vivia meio que em comunidade. Era uma grande família, tinha muita vida junto. Isso tudo leva a um jeito de olhar a vida. Era um mundo, vamos dizer, bem hippie.”  

Esse mundo moldou em Amora o que ela chama de valor principal, cultivado por ela desde cedo e um elemento importante na direção das novelas: a liberdade. Isso significa ser quem se é e não se preocupar com coisas menores como poder, dinheiro e fama. Por isso, diz, trabalhar na Globo desde nova foi bom, porque foi onde ela pôde continuar a exercer essa liberdade. “Consegui ser hippie de vários jeitos. Pude trazer essa minha formação, porque há muita liberdade artística aqui. Continuei livre, da minha origem ao que fui fazer na vida, e incentivo isso em quem trabalha comigo também.”  

Mas nem tudo foi fácil para Amora na Globo. Ela, que não esconde ter entrado na emissora pelo peso de suas origens, que leva no sobrenome e nos contatos, teve de início uma experiência difícil como atriz, aos 16 anos, na novela sobre vampiros “Vamp”, de 1991. Ali, o contato com a teledramaturgia, mesmo numa posição errada e sofrida, foi importante para que ela começasse a ter certa intuição de que o negócio dela era nos bastidores.  

Da atuação atrapalhada à direção de sucesso  

Amora diz que topou o desafio de atuar na novela “Vamp” porque era adolescente e queria abrir uma conta no banco. Ao lado de Preta Gil, sua melhor amiga, elas embarcaram juntas na empreitada de conseguir “jobs”, e o teste logo veio. 

“Fui para o teste, mas não tinha interpretação. Como era uma novela de vampiro, eles perguntaram sobre referências como Madonna, então me dei bem na entrevista e assinei o contrato. Me senti roubando no jogo.”  

Ela lembra que o problema dessa experiência começou já na prova de figurino. Amora não gostou da roupa e queria dar sugestões para a figurinista. Depois, passou a dar alguns pitacos na direção da novela e levou uma chamada dos diretores. “Eu não estava nem um pouco situada. Aí, obviamente, fui enquadrada pela realidade, porque de modo geral ela se impõe em qualquer contexto.” 

Ela lembra que se sentia humilhada e insegura nas gravações, pois percebia o quanto não pertencia àquilo. “Era um horror. A melhor coisa dessa novela para mim era que meus pais fictícios eram Paulo José e Zezé Polessa. O único prazer que eu tive foram aquelas aulas de dramaturgia, porque são dois atores fenomenais.”  

O prazer não durou muito. Depois de algumas gravações, ela soube que os pais de sua personagem morreriam. Amora, preocupada, pediu para que a filha morresse também, mas não foi atendida. “Tive que gravar o luto, foi uma tragédia total. Ali, começou meu trauma. Precisei fazer cenas chorando a morte dos pais. Claro que não consegui”. 

Hoje, para ela, como diretora experiente, o problema era claro: “eu não conseguia estar presente, e isso é o básico do trabalho de um ator. Estava angustiada, querendo fugir daquele momento. Quando terminou a novela, fiquei aliviada”.  

Amora ainda chegou a fazer uma peça de teatro infantil e foi chamada para fazer o teste para a novela “Meu bem, meu mal”, onde disputou um papel com Adriana Esteves, atriz que depois a diretora viria a dirigir em “O Cravo e a Rosa”, “Assédio” e “Avenida Brasil”, um dos maiores sucessos da emissora e a novela da Globo mais vendida para o exterior. 

Depois de Adriana Esteves ganhar o papel e de mais algumas dificuldades, Amora desistiu da atuação de vez e foi para o backstage. “Já tinha uma vaga intuição de que queria ser diretora desde o início. Achava que seria difícil, porque o Brasil tem poucas mulheres diretoras, mas queria tentar. E, pela minha criação, pensei que se fosse fiel ao que eu era, me daria bem, não importasse o que fizesse. E aí fui em busca disso. Pensei: ‘vou aprender isso aí’”, lembra. 

Foi então que, em 1995, Amora estreou na Globo como assistente de direção de “Malhação”. Depois de muito estudo e experiências na emissora, ela seguiu numa crescente e hoje acumula mais de 25 obras de sucesso, entre novelas e séries. 

Autoformação: muito além do audiovisual 

Embora tenha consciência dos seus privilégios ao entrar na Globo, Amora percebeu cedo que precisava de conhecimento para ganhar espaço na emissora. Foi logo atrás de estudar cinema por conta própria. “Não sou uma referência para as milhões de diretoras talentosas no Brasil, porque elas não têm a oportunidade que eu tive. Poucos têm essa chance de já estar num lugar, ser aceito nele e, a cada ano que passa, aprender mais e fazer um trabalho melhor. Eu tive uma oportunidade e usei ela bem. E nesse processo, entendi que, se você não estuda, não sabe nada”, diz. 

Aos 19 anos, ela planejou uma autoformação que durou 12 anos. Comprou um livro antigo de história do cinema mundial e dele criou uma lista de filmes que deveria assistir e estudar. “Alugava as fitas VHS na locadora, tinha cadernos para anotar tudo o que aprendia, e isso durou muito tempo. E eu tinha uma coisa de ver quatro filmes por semana. Esse programa era mais importante que tudo. Assisti muitas obras ‘chatas’.” 

Mas, para além do cinema, Amora acredita que há outras referências importantes para uma boa direção. “Freud, Nietzsche e Dostoiévski falam sobre as contradições do cérebro. Eles adiantaram o que a neurociência agora comprova: a área da dor é a mesma do prazer. Eles falam disso, e também do ser humano. Está tudo ali.” 

Liderança, uma questão de referência 

Amora já foi apontada pela imprensa como temperamental, arrogante e sincera demais em sua direção. Sobre isso, ela diz que a maturidade deu a ela um jeito próprio e confortável de liderar, mas que nem sempre foi assim. “Lá atrás, já ouvi coisas de diretores como ‘você tem que ser macho. Macho-alfa, macho-mulher, mas macho’. Essa frase representa muito a visão da persona de liderança que incorporei. Como havia poucas mulheres na Globo, eram minhas referências.” 

Depois de passar muito tempo tentando copiar o modelo de gestão masculino que via, ela diz prezar hoje pela delicadeza, algo que não acreditava poder exercer no trabalho. “É muito importante poder ser feminina. Hoje em dia sou muito diferente, e tenho em mente que o que fazemos na gravação, o sentimento do set, vai ao ar também”, completa Amora, que gosta de trabalhar em grupo e é reconhecida por isso. 

“Faço tudo muito junto com os atores, e não falo isso da boca para fora. Não vou fechada para o estúdio. Levo um estudo sobre o que importa na cena, mas vou sendo levada junto com eles. Essa criação coletiva para mim é o que sempre tento promover. Audiovisual é um trabalho em equipe”, reflete a diretora, que é feminina, mas também sabe da importância e do estigma de ter firmeza nas palavras. 

“Mulher fala uma coisa mais precisa, como ‘não, por favor, não gostei’, e já é estranho. O homem que diz a mesma coisa soa doce. Até o excesso de clareza pode imprimir algo. Se for um homem, não. Isso está embricado em todas nós, cada uma em sua estrutura. São fatos.” 

As atrizes dirigidas por Amora parecem passar por uma grande transformação e abertura nos sets. Adriana Esteves não se cansa de dizer em entrevistas que a diretora é muito viva e espontânea ao permitir que as coisas desabrochem em cena. Mariana Lima, dirigida por ela em “Assédio”, disse que ela ajudou a atriz a tirar a personagem Glória de um lugar previsível, pois a diretora provoca esse tipo transformação. 

Transformação, aliás, que Amora persegue para si. Seja na liderança, na criação de sua filha de 16 anos ou em casa, essa é sua obsessão. Mas, para mudar e enxergar a mudança, é preciso viver bem o presente. Talvez ela não tenha conseguido quando atuou em “Vamp”, mas, agora, essa é uma de suas maiores artes. 

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