Cotas para PCDs: avanços e desafios após 34 anos da lei
Legislação aumenta número de pessoas com deficiência empregadas, mas avanço ainda é lento e tem barreiras
A lei de cotas nº 8213/1991, que garante a inclusão de pessoas com deficiência em empresas brasileiras, completou 34 anos em julho deste ano. A legislação, na verdade, trata dos Planos de Benefícios da Previdência Social, e trouxe em seu artigo 93 a determinação de que empresas com 100 ou mais empregados devem reservar uma porcentagem de vagas para pessoas com deficiência. A reserva varia conforme o número de empregados na empresa, começando em 2% para companhias com 100 a 200 funcionários e chegando a 5% para aquelas com mais de mil colaboradores.
De acordo com dados do eSocial, em janeiro de 2025 havia 618 mil pessoas com deficiência trabalhando com carteira assinada no Brasil. Deste total, 93% estavam empregadas em empresas que são obrigadas por lei a contratar esse público. Segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a empregabilidade de pessoas com deficiência cresceu 60% acima do mercado geral de emprego no período de 2009 a 2021. Entretanto, apenas 53% das vagas previstas por lei para este público foram preenchidas.
O Censo de 2022 do IBGE revelou que, no Brasil, existem 14,4 milhões de pessoas com deficiência, representando 7% da população. Além disso, o número de mulheres com deficiência (8,3 milhões) supera o de homens (6,1 milhões). Ainda segundo o censo, apenas 29% da população com deficiência está empregada.
Para Andrea Schwarz, fundadora e CEO da Iigual, consultoria de diversidade e inclusão, a lei de cotas tem como objetivo diminuir a desvantagem social que as pessoas com deficiência enfrentam no Brasil. “De certa forma, ela impulsiona as pessoas a saírem de casa, a terem maior poder aquisitivo, e também promove a convivência entre pessoas com e sem deficiência. E essa convivência ajuda a reduzir vieses e estimula a criação de mais produtos e serviços acessíveis”, afirma.
A fiscalização da lei é realizada por auditores do Ministério do Trabalho e Emprego e a multa é calculada por vaga não preenchida, variando de R$ 3 mil a R$ 321 mil por colaborador com deficiência não contratado, dependendo da gravidade do descumprimento. A legislação mudou alguns pontos em 34 anos. O mais recente foi a revisão dos valores da multa, que ocorreu no início de 2025. Outras alterações incluíram novos perfis no quadro de deficiências, como visão monocular, deficiência auditiva unilateral e pessoas com autismo.
Como impacto, a lei trouxe visibilidade para a questão e ajudou efetivamente a aumentar o número de pessoas com deficiência no mercado de trabalho brasileiro. “Desde então, o número de contratações só evolui a cada ano. Pode até haver alguma variação no percentual, porque ele depende do total de pessoas contratadas, mas em números absolutos de pessoas com deficiência, não há retrocesso”, destaca Carolina Ignarra, CEO da Talento Incluir.
Desafios pela frente
Apesar do aumento absoluto, apenas metade das vagas destinadas a esse público foram preenchidas em mais de três décadas. E o principal desafio a ser vencido é cultural. “Quando a gente começa a desconstruir esses preconceitos e entende as necessidades específicas das pessoas com deficiência, a gente deixa de ver, por exemplo, uma rampa como custo e passa a enxergar como investimento. Por isso a legislação é tão importante: ela nos obriga a pensar em um país para todas as pessoas”, reflete Andrea.
Para Carolina Ignarra, outro desafio importante a ser considerado é a falta de perspectiva para a carreira de pessoas com deficiência. ”Quando uma pessoa cresce sabendo que pode trabalhar numa multinacional, se vê representada ali, ela tem ambição de chegar lá. Já uma pessoa com deficiência que nunca se viu nesse lugar nunca sonhou com isso. Então, nesse sentido comportamental, ainda é necessário ajustar a cultura da empresa para acolher essas características, como ambição, protagonismo e segurança, que são muito valorizadas no mercado, mas que muitas vezes não foram estimuladas em pessoas com deficiência”, pontua a consultora.
O primeiro gargalo a ser enfrentado é na contratação. Como pontua Carolina, muitas empresas alegam que não conseguem encontrar talentos com deficiência. “O problema é que as empresas querem fazer do mesmo jeito que fazem para o público em geral. Só que não dá para comparar. Estamos falando de um grupo com altíssima taxa de desemprego, com pouquíssima representatividade, e que não se vê espontaneamente nos espaços, então não se inscreve naturalmente”, afirma.
Em sua atuação como consultora, Ignarra ajuda empresas a encontrarem talentos e afirma que sempre encontrou pessoas com deficiência para preencher certas vagas. “A barreira real é falta de conhecimento, de intencionalidade e de disposição. Porque dá trabalho e exige esforço”, complementa.

Carolina Ignarra, CEO do Grupo Talento Incluir (Crédito: Arthur Calasans)
Papel das lideranças
Para destravar este impasse, as especialistas destacam o papel das lideranças no engajamento com a pauta. “Costumo dizer que liderança muda a cultura. Quando muda a liderança, parece outra empresa. Se a cultura valoriza a diversidade, ela se mantém. Mas como a lei de cotas não é prioridade, isso vai oscilando conforme o engajamento de quem está no comando”, destaca Ignarra.
O conselho da consultora é focar no desenvolvimento de carreira para esses profissionais e oferecer oportunidades de crescimento. Como pontua Andrea, o profissional com deficiência avalia as oportunidades como qualquer outra pessoa, incluindo salário, crescimento e benefícios, para além das questões de acessibilidade.
De acordo com a pesquisa “Radar da Inclusão 2024”, realizada pela Talento Incluir em parceria com o Pacto Global da ONU, o Instituto Locomotiva e o IO Diversidade, os principais critérios para a decisão profissional de pessoas com deficiência são a perspectiva de crescimento e o salário. A acessibilidade e a presença de programas de inclusão estão em terceiro lugar na lista.
A palavra-chave usada pelas consultoras é equidade, de acesso, oportunidades e crescimento. “Equidade precisa ser mantida em todos os processos: no recrutamento, na avaliação e na gestão de carreira. Avaliar uma pessoa autista, por exemplo, com os mesmos critérios que se avalia uma pessoa neurotípica num processo de PDI não é justo. É preciso ajustar a cultura, ter flexibilidade arquitetônica, considerar home office para certos perfis e adaptar os métodos de avaliação”, ressalta Ignarra. Segundo a pesquisa, embora metade das pessoas empregadas tenham mais de 3 anos de empresa, 63% nunca tiveram uma promoção. O que demonstra a baixa qualidade das contratações de pessoas com deficiência no mercado.
“Então, além de não cumprir a cota, a empresa também não distribui as pessoas com deficiência de forma proporcional na estrutura. Isso mostra claramente o preconceito, porque a pessoa com deficiência não é dona da própria jornada”, reflete Ignarra. Para a especialista, a inclusão também contribui para o fortalecimento da marca empregadora e da reputação da empresa, o que atrai mais talentos desse grupo.
Para além da lei
Ainda de acordo com o estudo “Radar da Inclusão”, 9 em cada 10 profissionais com deficiência já sofreram capacitismo no local de trabalho. Mesmo assim, apenas 35% relataram o ocorrido à empresa. Entre os que não relataram, os principais medos eram de retaliação, de serem demitidos e de não obter resultados. Dos que experienciaram o capacitismo, 84% tiveram sua saúde mental impactada.
“A gente institucionaliza esse preconceito escancarado em relação à inclusão da pessoa com deficiência. E, por isso, a lei de cotas ainda é necessária. Se essa legislação cair hoje, é muito provável que pessoas com deficiência sejam desligadas, porque ainda não se enxerga valor na nossa empregabilidade. E deveria se enxergar”, destaca Schwarz.

Andrea Schwarz, CEO da Iigual (Crédito: Divulgação)
Para a executiva da Talento Incluir, programas de inclusão devem ser desenvolvidos com governança e indicadores. “E que esses indicadores não sejam só sobre número de contratações, se bateu ou não bateu a meta da cota. Mas e a qualidade? Quantos foram promovidos? Há quanto tempo estão na empresa? Quantos estão em cargos de liderança? Que ações a empresa já fez pro desenvolvimento dessas pessoas? Tem mentoria específica? Elas participam dos eventos da empresa? Então, os indicadores precisam ser construídos com base na qualidade da inclusão. Não é só estar ou não estar”, pontua.
As especialistas também destacam a importância de enxergar as singularidades de cada indivíduo e não reduzi-lo à um rótulo. “Mesmo que sejam dois homens autistas de 30 anos, as necessidades para a carreira vão ser diferentes. Então cuidar da carreira é, mais do que nunca, entender essa singularidade”, reflete Ignarra. O que inclui a acessibilidade para cada indivíduo e suas necessidades, sejam adaptações físicas, tecnológicas ou atitudinais.
Andrea Schwarz finaliza ressaltando a questão da representatividade de pessoas com deficiência na liderança e detalha como a acessibilidade é o ponto de partida para alcançar essa meta. “A gente trabalha para que as empresas comecem a entender o papel da acessibilidade, tanto física quanto tecnológica, como ponto central dessa mobilidade de carreira. Também é essencial não recrutar pela deficiência, mas pela qualificação. Porque o que acontece é que, sem acessibilidade, muita gente capacitada fica de fora. Quando a gente investe nisso, abre mais portas para talentos que podem, sim, ocupar diferentes espaços”, finaliza.