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Educação financeira e afroempreendedorismo feminino

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Educação financeira e afroempreendedorismo feminino

Gabriela Chaves e Bia Santos são economistas e empreendedoras e contam como a educação financeira é capaz de mudar a realidade das mulheres negras


18 de novembro de 2022 - 17h46

O movimento black money, ou “dinheiro preto”, em tradução livre, se refere a uma corrente de pensamento que se iniciou no século 20 e está associada aos ideais pan-africanos, com Marcus Garvey sendo um dos pensadores mais proeminentes. A filosofia defende o fortalecimento econômico das comunidades afrodescendentes ao redor do mundo, por meio do consumo intracomunitário, ou seja, da compra e venda entre a população negra. “Essa perspectiva incentiva o consumo e o investimento intracomunitário, entendendo que o uso do dinheiro é político”, explica Gabriela Chaves, fundadora e CEO da NoFront, empresa que desenvolve metodologias e cursos sobre educação financeira para populações socialmente vulneráveis.

Nessa perspectiva, o fortalecimento econômico não perpassa apenas por um recorte racial, mas também de gênero, uma vez que as mulheres pretas e pardas são o maior grupo da População em Idade Ativa (PIA), de acordo com o PNADC/IBGE, partindo de 26%, em 2012, para 28,3% em 2022. Além disso, elas também são maioria entre as chefes de famílias, 38,7%, de acordo com o IBGE. Mesmo assim, enfrentam grandes dificuldades em integrar o mercado de trabalho: têm a menor taxa de participação neste ano, com 51%, representam o maior grupo desempregado, 16%, e têm o menor rendimento médio.

“Estamos a poucas gerações da abolição da escravatura e essas são as consequências desse período escravocrata, que dificultam o acesso da população negra a oportunidades muito básicas como educação de qualidade, saúde e até educação financeira”, explica Bia Santos, fundadora e CEO da Barkus, empresa de educação financeira. Dessa forma, a população negra, e principalmente as mulheres pretas e pardas, sofrem grandes problemas de inclusão financeira, desbancarização, inclusão produtiva e acesso a empregos de qualidade. “Isso, infelizmente, mantém a população negra à margem da sociedade, aceitando o emprego que dá, com acesso às escolas que dá, ao hospital que dá”, continua.

AS PRIMEIRAS EMPREENDEDORAS DO BRASIL

Bia Santos fez pós-graduação em História e Cultura Africana e Afrobrasileira e descobriu que, ao contrário do que os livros de história da escola diziam, as mulheres negras foram as primeiras grandes empreendedoras do Brasil. “Inclusive, chegaram a ser o segundo grande grupo social de influência na época da colonização e escravatura no país, mas essas histórias não são contadas”. Na época, existiam os “escravos de ganho”, que conseguiam algum benefício, mas ainda pagavam um aluguel para seus senhorios.

“Essas mulheres enriqueceram, pagaram por sua alforria, alforriaram outras escravizadas e conseguiram criar grandes comunidades para além dos quilombos que a gente conhece hoje. Existem vários registros e testamentos delas que deixaram suas riquezas para outros africanos e afrobrasileiros, e acabamos deixando essa história para trás”, conta Bia Santos.

Dessa forma, o raciocínio é: quando estas mulheres negras empreendem, elas estão reconquistando um espaço que era delas, mas do qual o novo sistema econômico as empurrou para a margem e esqueceu de educá-las. “Isso gera um desafio muito grande, porque se de um lado as mulheres negras ganham sistematicamente menos, por outro, compomos o maior grupo das chefes de família, de pessoas que são financeiramente responsáveis pela manutenção do lar e de outros dependentes. Então, o empreendedorismo aparece como oportunidade de conseguirmos superar essas assimetrias, entendendo que o mercado e o empreendedorismo também as tem”, explica Gabriela.

Apesar de enfrentar grandes dificuldades para empreender, como ter acesso a crédito ou a investimentos, elas demonstram maior preocupação com problemáticas que são ignoradas por outros grupos sociais, de acordo com a fundadora da NoFront. “Vemos muitas mulheres negras empreendedoras atendendo demandas que foram negligenciadas pelo mercado durante muito tempo. Posso dar o exemplo da área de cosméticos, onde existe um movimento de mulheres negras criando produtos naturais a partir de alimentos em resposta a uma negligência da própria indústria de cosméticos, que não pensava em produtos para cabelos crespos.”

Nesse ponto, ainda na visão de Gabriela, existe um desafio e uma oportunidade. O desafio de superar o lugar comum que a sociedade espera que as mulheres negras ocupem, e a oportunidade de atender a demandas que foram ignoradas por outros grupos. “É o momento de colocarmos nossas ideias na mesa, de desenvolvermos nossos negócios e projetos de impacto social. A NoFront, inclusive, é um negócio de impacto social”, ressalta Chaves.

“PRETO E DINHEIRO SÃO PALAVRAS RIVAIS?”

Gabriela Chaves, economista e CEO da NoFront (Crédito: The Beshi)

Foi trabalhando no mercado financeiro que Gabriela Chaves encontrou uma realidade muito diferente daquela que vivia em casa. Ela encontrou pela primeira vez pessoas que investiam dinheiro ao invés de viver na base do endividamento para conquistas pessoais. “Eu via as pessoas com cinco cartões de crédito, vários carnês, e não via ninguém falando sobre investimentos”, relata. Apesar da nova perspectiva, ela também encontrou outra realidade comum, principalmente entre as mulheres: seus colegas homens, que ocupavam o mesmo cargo que ela, tinham um salário superior. “Foi nesse momento em que decidi viver com base no conhecimento que eu havia adquirido até ali. Entendi que ele era muito valioso, sobretudo para as mulheres da periferia”.

Gabriela passou a pensar em como compartilhar o conhecimento que tinha do mercado financeiro com as pessoas da periferia, porém, de um modo em que elas se sentissem parte daquele universo. Ela, então, desenvolveu uma metodologia que ensina educação financeira a partir do rap, e, hoje, já formou mais de 6 mil pessoas no Brasil inteiro.

“A NoFont nasceu com o objetivo de fazer com que a economia seja um campo de discussão tão democrático quanto qualquer outro, e de ser uma plataforma para que as pessoas busquem, encontrem e adquiram conhecimento sobre finanças, para organizar a vida e o futuro”, conta.

EDUCAÇÃO FINANCEIRA COMO MOTOR DE MUDANÇA

A população negra é o grupo mais endividado do Brasil, e sair deste lugar ainda é um grande desafio, pois vem de uma perspectiva histórica. “Para se conseguir a alforria, muitos escravizados, na época, acabaram se endividando, porque eles não tinham terras ou poder financeiro. Inclusive, até o século 19, a população negra não podia acumular pecúlio, não existia possibilidade de abrir a sua própria conta e poupar recurso”, explica Bia Santos.

Até hoje, a população negra enfrenta dificuldades em abrir contas em instituições financeiras. O crédito é muito mais negado para eles do que para brancos e, quando conseguem, são aplicadas taxas de juros abusivas. “Também existe a dificuldade de reservar dinheiro, até porque tudo é muito urgente. Impera a lógica de vender o almoço para pagar o jantar, e isso dificulta o planejamento financeiro de médio a longo prazo”, explica.

Tanto Gabriela como Bia enxergaram a necessidade de ensinar como funciona o sistema financeiro para esta população, historicamente segregada da economia. Pela falta de políticas públicas e maior engajamento das organizações para a resolução deste problema, elas tomaram as rédeas da educação financeira para si.

“Quando ensinamos a população a lidar com esses percalços, a entender melhor sobre o sistema, esse grupo consegue se posicionar. Eles entendem que hoje existem tipos diferentes de instituições financeiras que conseguem acessar, entendem quais serviços podem acessar e qual o melhor momento para recorrer. Passam também a conhecer seus direitos e conseguem cobrar essas instituições, inclusive juridicamente, para conseguirem se proteger de determinadas situações, como cobranças e juros abusivos”, explica.

O letramento econômico é uma grande ferramenta para movimentos que lutam contra o racismo e o machismo. “A educação financeira precisa necessariamente ser antirracista para lidar com a realidade brasileira. Não dá para falar de uma teoria de educação financeira no Brasil do século 21 que não considera as desigualdades raciais, de gênero e geográficas que existem nesse país”, diz Gabriela.

“A educação financeira permite que as pessoas saiam do endividamento, reconquistem a autoestima e a saúde mental, além de reduzir a ansiedade e o estresse”. Segundo ela, para uma população que vive na base da sobrevivência, não existe perspectiva de futuro, de aposentadoria, de comprar uma casa própria. A informação gera poder de decisão, e esse poder é capaz de romper com o ciclo da pobreza, e inclusive da violência: “Muitas mulheres têm dificuldades de sair de uma situação abusiva pela dependência econômica. Então, pensar nesse empoderamento econômico tem muitos significados, que vão desde a cura à perspectiva de futuro”, conta.

BIA SANTOS: EMPREENDEDORISMO E EMPODERAMENTO ECONÔMICO

Bia Santos, economista e co-fundadora da Barkus (Crédito: Divulgação)

 

Bia Santos é uma jovem de 26 anos da zona norte do Rio de Janeiro que, ao contrário da maioria dos empreendedores negros, que são empurrados ao empreendedorismo pela necessidade, chegou nele ao enxergar uma oportunidade. Durante um projeto da escola, ela entrou em contato pela primeira vez com o tema da educação financeira e do comportamento do consumidor e, desde então, nunca mais parou de falar sobre o assunto.
“Ter acesso a essa temática muito nova foi super importante para que, desde cedo, eu estabelecesse meus objetivos, começasse a investir, conseguisse ter uma reserva de emergência e vislumbrasse essa possibilidade, porque isso é uma coisa muito fora da realidade da população negra e mais jovem”, relata.

O projeto inicial começou em 2012, mas foi em 2016 que a Barkus surgiu, e há seis anos segue com o intuito de levar educação financeira para escolas, empresas e impactar principalmente as classes mais baixas. “Começamos com palestras, cursos e oficinas, e depois lançamos um produto para escola que apoiava a implementação de metodologias de educação financeira para os alunos, professores e responsáveis, de forma a desenvolver atitudes e comportamentos financeiros mais saudáveis”, descreve Bia.

A educação financeira se tornou tema obrigatório da base curricular dos ensinos fundamental e médio. Porém, com a pandemia e as escolas fechadas, a temática acabou ficando de lado, e Bia e os sócios viram a necessidade de mudança do negócio. Eles desenvolveram uma inteligência artificial chamada Iara, que ensina educação financeira via aplicativo de mensagem instantânea, num formato de curso e com certificado ao final. “As empresas contratam a tecnologia para oferecermos aos seus colaboradores e clientes, e, dessa forma, conseguimos disponibilizar educação financeira por meio do WhatsApp, que é o canal mais utilizado no Brasil hoje, e para o usuário final é gratuito”, explica. Em outubro deste ano, a Barkus já conseguiu impactar 100 mil pessoas.

O PAPEL DAS EMPRESAS

Thainá Assumpção, coordenadora de Comunidade da ImpulsoBeta (Crédito: Divulgação)

Dado o contexto apresentado da exclusão social e econômica da população negra, em especial das mulheres negras, é imprescindível que as organizações tomem medidas para remediar o problema. Thainá Assumpção é coordenadora de Comunidade da ImpulsoBeta, consultoria de gestão de mudança em diversidade, equidade e inclusão. Em sua atuação, ela ajuda as empresas a adotarem medidas que promovam a inclusão social de grupos minorizados.

“É nítido que, no Brasil da desigualdade e do racismo estrutural, as pessoas negras sejam a população historicamente barrada nas empresas, principalmente em cargos de liderança e com altos salários. A desigualdade salarial, no caso das mulheres negras, por exemplo, é ainda mais grave: seu salário corresponde a 57% do salário do homem branco (rendimento médio mensal de cada gênero, segundo levantamento de 2019 do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o que impacta em sua atuação econômica de consumo, moradia, educação, saúde e outros, visto que a preocupação imediata de grande parte das mulheres negras e periféricas está no sustento familiar, na garantia de assistência básica à alimentação e a um teto para sobreviver”, revela Thainá.

Segundo a consultora, para além de ser uma questão social importante, as práticas de diversidade e inclusão são capazes de gerar bons resultados para as empresas. “Uma cultura de diversidade e inclusão gera motivação, satisfação com o trabalho e um ambiente de inovação”, diz. Essa pauta, hoje, se tornou um ponto importante para a agenda ESG, sendo incluída em planos estratégicos até por uma questão de negócios.

“Trabalhar políticas de inclusão racial que tenham clareza da vulnerabilidade socioeconômica da população negra é fomentar a mudança na estrutura social de consumo das classes C, D e E, gerando oportunidades de renda, ascensão profissional e fortalecimento de comunidades negras. Já disse a professora e filósofa Angela Davis: ‘Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela’”.

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