Estratégias corporativas de apoio à economia do cuidado
Qual o papel das organizações de cuidar de quem cuida?
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Lidia Capitani
1 de março de 2024 - 13h52
A discussão sobre a economia do cuidado tem pautado muitos espaços, impulsionada principalmente após ser tema de redação da prova do Enem de 2023. Segundo estudo recente da FGV, as mulheres no Brasil são responsáveis por 65% desta carga de trabalho, empenhando 21 horas semanais, enquanto os homens despendem 11 horas — uma economia que representa 13% do PIB brasileiro.
O resultado desta sobrecarga são mulheres estressadas, cansadas, desenvolvendo transtornos mentais e perdendo oportunidades profissionais pelo estigma que a maternidade e o papel feminino na sociedade trazem. Neste contexto, quem deveria, ou poderia, cuidar daquelas que cuidam? “A importância do cuidado é evidente, pois a condição emocional e física de uma pessoa afeta diretamente sua motivação, produtividade e engajamento”, argumenta Mariana Talarico, diretora de desenvolvimento organizacional, cultura e bem-estar Latam na Natura.
Logo, investir em quem cuida traz grandes repercussões para a empresa e para o país. “Ao proporcionar igualdade de oportunidades e contratar mulheres, estamos contribuindo para o desenvolvimento da sociedade, que será consumidora no futuro, reinvestindo na economia, promovendo dignidade, criando oportunidades para as futuras gerações e assim por diante”, reflete Flávia Lisboa Porto, diretora de RH do Grupo Reckitt.
Uma proposta para que empresas comecem a pensar em como contribuir para a economia do cuidado é criando espaços de discussões, como comitês ou grupos de diversidade. Na Reckitt, por exemplo, existe uma extensão do grupo de mulheres para debater questões acerca da parentalidade, incluindo tanto pais e mães quanto aqueles que não são. “A ideia é trazer aliados, pois enfatizamos que todos compartilhamos a responsabilidade por uma sociedade mais justa, e essa justiça inclui o equilíbrio de gênero”, explica Flávia.
Ela ainda destaca que, ao criar tais espaços de acolhimento e debate, é importante incluir os homens na conversa. “A organização precisa estabelecer políticas e diálogos que incluam os homens, reforçando que o papel do cuidado e da parentalidade é uma responsabilidade compartilhada, independente do gênero”.
A própria Reckitt tem uma trilha de letramento focada na paternidade. “Esse treinamento é valioso, pois muitos homens não tiveram oportunidades fora da empresa para discutir essas questões ou ter referências sobre o assunto. Muitos cresceram com a ideia normatizada de que a carga mais pesada recai naturalmente sobre as mães”, afirma Flávia.
Outro exemplo, no caso, da Natura, são os cursos de mentorias de carreira focados em mulheres, com intuito de discutir o lugar social do feminino. “Estamos elaborando um programa que aborda o papel atual da mulher na sociedade, incluindo questões relacionadas à maternidade. Nosso objetivo é criar um ambiente que promova o crescimento profissional e pessoal das mulheres em nossa organização”, explica Mariana Talarico.
A advogada e sócia-diretora da Irmanas, Camila Lourençato, revela que o prazo de cinco dias da licença paternidade instituídos pela Constituição, na verdade, era para ser uma determinação temporária. Em dezembro passado, o STF reconheceu a omissão do Congresso e concedeu 18 meses para a regulamentação de uma nova licença.
Em resposta, entidades, pessoas e empresas se reuniram para formar a CoPAI, uma coalizão que defende a regulamentação da licença paternidade estendida, remunerada e obrigatória. “A equiparação da licença paternidade à maternidade não beneficia apenas o ambiente corporativo, mas também contribui para o desenvolvimento saudável das crianças e apoio psicológico às mães no puerpério”, reforça a advogada.
Entretanto, a extensão da licença sem uma cultura de corresponsabilidade dentro das empresas não será efetiva. Carine Roos, CEO da Newa, destaca a importância deste tópico com o exemplo da Suécia. No país, pais e mães têm o direito a 480 dias de licença, podendo alternar entre o casal.
Contudo, o governo local precisou modificar alguns pontos da lei para incentivar que os homens realmente tirassem a licença. Hoje, os homens usam cerca de 30% dos dias concedidos. “A discussão que se seguiu revelou que esse comportamento estava associado ao medo de perder prestígio, poder e status. Isso nos leva a refletir sobre a necessidade de conexão entre políticas de licença parental e uma mudança cultural mais ampla”, destaca a executiva.
Enquanto a conversa para os homens deve girar em torno do papel ativo como pai, para as mulheres deve reforçar a capacidade profissional, criando cada vez mais espaços e oportunidades de crescimento. Neste sentido, o estabelecimento de metas de inclusão de mulheres em diferentes esferas da empresa é fundamental.
O primeiro ponto é garantir a presença feminina em posições de alta gestão. “A representatividade nas lideranças superiores envia uma mensagem clara de aceitação e valorização da mulher em todos os aspectos, especialmente nas indústrias que enfrentam maiores desafios”, afirma Mariana Talarico.
Em segundo lugar, as empresas precisam revisar suas políticas salariais, diminuindo o “gender pay gap”. Indo mais fundo nesta discussão, Flávia Lisboa Porto destaca a possibilidade das empresas adotarem uma política de salário digno.
“Muitas organizações baseiam suas decisões salariais no mercado e na legislação do salário mínimo. No entanto, é necessário considerar o que é digno, levando em conta o custo de vida e as necessidades específicas das mulheres, incluindo políticas e benefícios que se estendem aos filhos e aos cuidadores”, afirma a diretora de RH do Grupo Reckitt.
Por fim, mas não menos importante, esta perspectiva de inclusão deve começar pelos processos seletivos. “Em todas as contratações, garantimos que pelo menos uma mulher esteja entre os finalistas, reforçando nossa intenção de promover a participação feminina em todos os níveis da empresa”, afirma a executiva da Natura.
Para além dos cumprimentos obrigatórios por lei, existem uma série de outros benefícios que as empresas podem oferecer que promovem apoio a mães e pais. Carine Roos destaca a importância da cobertura integral da licença-maternidade, a fim de não privilegiar certas mulheres em detrimento de outras, o que pode aumentar as desigualdades sociais entre mães brancas e negras, por exemplo.
Existem também exemplos de organizações que oferecem creches internamente e salas de aleitamento, ou ainda, auxílio-creche. Práticas como essas são importantes, pois nem todas as mulheres têm recursos para investir por conta própria.
O que esbarra diretamente no próximo ponto, que é a revisão da concessão de benefícios para diferentes formações familiares. “A sociedade está passando por transformações, e as empresas precisam adaptar seus processos e sistemas para representar essa diversidade desde a contratação até a aposentadoria”, reflete Flávia Porto. Em novas conformações familiares, é comum enfrentarem desafios em relação a quem é concedido a licença maternidade ou paternidade, quem pode incluir dependentes em planos de saúde ou ainda quem recebe auxílio-creche.
Por fim, o legado da pandemia trouxe a flexibilidade de expediente e de modelos de trabalhos como uma possibilidade, que, inclusive, apoia e promove maior inclusão de mães. Mariana Talarico dá o exemplo da Natura que promove uma política de horários flexíveis. “Naturalizamos a ideia de que o papel da mulher não deve ser um dilema, permitindo que ela possa gerenciar seus horários de acordo com suas necessidades. Essa flexibilidade é crucial para criar um ambiente favorável às mulheres”, explica.
Conectado com a necessidade de ter mais mulheres em posição de liderança, a empresa também precisa repensar como está avaliando a performance de seus colaboradores. Muitas vezes, as avaliações de desempenho e feedbacks esbarram em vieses que privilegiam homens, consequentemente, diminuindo oportunidades para as mulheres.
Visto que as mulheres acabam dedicando mais horas semanais aos trabalhos de cuidados do que os homens, essa balança pesa mais para o lado delas. “Se não abordarmos esse modelo, corremos o risco de reforçar a ideia de que os homens sempre terão um desempenho superior, resultando em salários mais altos ao longo da gestão salarial”, destaca Flávia Porto. “Devemos provocar discussões sobre performance e avaliação de desempenho, garantindo que não estejamos recompensando apenas o esforço”, continua.
Logo, a produtividade e desempenho deveriam ser medidas pelas entregas e objetivos alcançados do que pelo tempo dedicado ou a disponibilidade do colaborador. “Avaliar a produtividade vai além de simples relatórios, envolvendo a compreensão do papel da pessoa na equipe e sua contribuição para um ambiente saudável”, afirma Camila Lourençato.
São pontos como este que destacam a influência de vieses em decisões importantes. “Ao realizar análises e diagnósticos, é essencial considerar as intersecções de gênero, raça, classe e idade. As empresas devem adotar uma abordagem interseccional para compreender a complexidade dos desafios enfrentados por diferentes grupos”, propõe Carine Roos.
Neste contexto, as lideranças exercem uma função essencial para o fomento de uma cultura que apoia a maternidade e promove a corresponsabilidade. A fim de combater tais vieses de gênero e raça, práticas como a de letramento de lideranças e times são fundamentais. Para Mariana Talarico, por exemplo, foi importante passar por esses treinamentos. “Isso me permite ter uma compreensão mais profunda das realidades que as mulheres enfrentam ao se tornarem mães”, afirma.
Consecutivamente, as lideranças precisam adotar uma postura mais humanizada e empática. “Esse olhar sensível para as necessidades dos colaboradores contribui para o desenvolvimento de líderes mais eficazes em todos os níveis da empresa”, afirma a advogada Lourençato.
Por fim, também parte da liderança a necessidade de ser um modelo da cultura corporativa. Um colaborador que vê seu líder aderindo a licença de forma integral, mostrando sua vulnerabilidade e assumindo compromissos com a família se sente mais à vontade e propenso a seguir o exemplo.
“Aqueles que desempenham papéis de cuidado podem contribuir para normalizar essa experiência, incentivando todos a perceberem que a parentalidade é parte integrante da vida e pode ser assumida por qualquer pessoa, independentemente do gênero ou fase da vida”, conclui Flávia Lisboa Porto.
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